O desígnio do pensador O espírito do lugar
O Centro de Estudos Ibéricos nasceu da ideia do ensaísta Eduardo Lourenço na sessão solene comemorativa do Oitavo Centenário do Foral da Guarda, em 1999. «Oito séculos de altiva solidão!», pranteou o admirável orador, enquanto revisitava o lugar que o acolhera na adolescência e que disse ter-lhe determinado alguns aspectos fundamentais da sua vida. Tornado às origens em romagem pela História, o pensador agarrou o fio esparso do labirinto da saudade e, com o brilho dos simples, profetizou que o enleio não seria crítico de desfazer. Existe, acima de tantos equívocos, uma ideia falsa de interioridade que nos consome. Falsa, porque a Beira só é interior depois que Portugal se definiu pelo mar. Mas, afinal, o mar que a Beira e esta sua Cidade não receberam de companhia permanece, de outro modo, há oito séculos diante de nós – e nunca quisemos vê-lo. Já não se vigia nem se conquista, já não carrega perigos recônditos e não se chama Castela! Chama-se Ibéria! Esta é a Cidade que está mais vocacionada que nenhuma outra para ser o lugar de um diálogo com aqueles que foram nossos adversários durante séculos. Invocando inovados desígnios, incitando novas batalhas, Eduardo Lourenço demandou que a Guarda continuasse de atalaia – na busca de «um futuro comum para uma Ibéria da Europa onde já estamos». Lançou, a 27 de Novembro de 1999, o desafio da criação de um Instituto da Civilização Ibérica com a Cidade centenária como centro – e lugar.
Acabou por se chamar Centro de Estudos Ibéricos e surgiu exactamente um ano após ter sido lançado este repto. Teve a boa fortuna do patrocínio, de um lado e do outro da imaginária fronteira, de duas das mais prestigiadas instituições da Europa e que, ao longo dos séculos, foram modelo da universidade peninsular: a Universidade de Coimbra e a Universidade de Salamanca. Como se ambas apenas aguardassem o chamamento autêntico que as associasse no estudo da Civilização Ibérica como um todo multidisciplinar.
Mas existirá esse «Espírito da Guarda» que serve de lema ao Centro de Estudos Ibéricos? Existe e existiu ao longo de séculos, porque, mau grado múltiplos obstáculos e estrangulamentos, a Guarda sempre gozou uma posição privilegiada e procurou, fazendo jus ao nome e à História, afirmar uma centralidade – no plano geoestratégico, primeiro; nas particulares circunstâncias sociais, económicas e culturais, depois. Existiu após a Revolução de Abril de 1974, que impulsionou a Espanha para o seu próprio processo de transição para a Democracia. Foi na Guarda, no ano de 1976, que teve lugar o encontro histórico entre os Ministros dos Negócios Estrangeiros de ambos os Países, Melo Antunes e José María Areilza. A Espanha moderna começou aqui a ser projectada.
Com este lastro histórico e cultural precioso, cabe à Guarda reafirmar a centralidade, valorizando o espaço transfronteiriço onde se enquadra e projectando-o para uma dimensão ambiciosa e integradora. Abolidas as fronteiras físicas, a Cidade só já enfrenta a fronteira do tempo. A nova realidade europeia coloca geograficamente mais distante a raia do velho continente. A ordem natural das coisas impõe uma estratégia de coesão que, gradualmente, deixará de olhar para Portugal e para Espanha como beneficiários necessitados. Neste quadro, é imperativo que a união e o desenvolvimento das regiões de fronteira dos dois Países prossiga redireccionando-se através dos valores imateriais: séculos de História partilhada, vivências em comum, cumplicidades. A cultura, a ciência e o saber formam a riqueza potencial que determinará a sobrevivência de uma identidade própria num quadro continental com cada vez mais expressiva multiplicidade civilizacional.
O Centro de Estudos Ibéricos soube intuir esta realidade e procura, agora, afirmar-se como um sólido traço-de-união. É uma instituição singular. Foi o sonho do maior Ensaísta português vivo, concretizado em pouco tempo pela determinação da Câmara Municipal da Guarda em aceitar o desafio, pelo entusiasmo das duas mais prestigiadas Universidades da Península Ibérica e pelo empenho de um conjunto de personalidades de altíssimo relevo académico e científico – unidas da percepção do verdadeiro «Espírito da Guarda». Cinco anos de actividades resultam já num acervo valiosíssimo de ideias e experiências. Um património para uma identidade. Um legado para o saber.
27 de Novembro de 2000
A 27 de Novembro de 2000, Dia da Cidade (um ano após Eduardo Lourenço ter lançado o desafio), foi celebrado, entre a Câmara Municipal da Guarda, a Universidade de Coimbra e a Universidade de Salamanca o Protocolo para a criação do CEI. «Sinto que estou a viver um momento histórico», foi como o Reitor da Universidade de Coimbra, Fernando Rebelo, expressou o que sentiu por participar num passo decisivo a caminho de uma «mais profunda» relação com a congénere centenária Instituição de Salamanca. Foi essa oportunidade da aproximação entre as duas Universidades que o Reitor de Salamanca, Ignácio Berdugo de La Torre, também assinalou. Há uma história que se cruza, mas o passado é apenas «um cartão de visita e de apresentação». O Centro de Estudos Ibéricos seria o modo e o lugar para um futuro em comum. As três Instituições – às quais viria, numa segunda fase, a juntar-se o Instituto Politécnico da Guarda – comprometeram-se a agir pelo encontro, pela reflexão e pela divulgação das culturas portuguesa e espanhola, a reforçar o relacionamento, a cooperação e a investigação no campo universitário, a promover o intercâmbio entre organismos e departamentos que representem áreas académicas e científicas dos dois Países e a apoiar a formação e a investigação. São nove (sem prejuízo de outras que venham a ser acolhidas) as áreas prioritárias das acções do Centro: História; Literatura; Filosofia; Geografia; Sociologia; Economia; Direito; Relações Internacionais; e Bibliotecas. A formalização do Centro de Estudos Ibéricos concretizou-se a 18 de Maio de 2001, mediante Escritura Pública entre a Câmara Municipal da Guarda, a Universidade de Coimbra e a Universidade de Salamanca. É uma associação sem fins lucrativos, com sede nas instalações do Município da Guarda (onde funcionam a Coordenação Local e os serviços de apoio), composta por Assembleia-Geral, Direcção, Conselho Fiscal, Comissão Executiva e Comissão Científica. Para Director Honorífico foi convidado o Professor Eduardo Lourenço. Nos restantes órgãos, em particular na Comissão Científica, tem assento um elenco das mais reputadas personalidades do corpo docente e científico das duas Universidades. Foi, afinal, para este diálogo ibérico que o Centro surgiu. Situada no eixo histórico e cultural que liga Coimbra a Salamanca, a Guarda deverá saber cumprir o desígnio de dinamizar proximidades e reforçar laços de entendimento. Também no conhecimento, a Cidade deverá afirmar-se como importante encruzilhada intermodal potenciadora de trânsitos e diálogos. Uma Cidade ibérica – localizada no traço-de-união do saber.
Todos nós – uma identidade na Europa
Nos 800 anos da Cidade da Guarda foi lançado o desafio, nos 801 foi formalizada a ideia, nos 802 reuniram-se vultos da cultura portuguesa e espanhola para debaterem a Ibéria no contexto da Europa. A encerrar o primeiro ano de actividades, o Centro de Estudos Ibéricos justificou as expectativas e cumpriu o repto do criador. Na mesma cátedra, onde apenas dois anos antes tinha sido o provocador, Eduardo Lourenço foi agora o anfitrião. O Ensaísta recebeu, na Cidade que lhe pertenceu por um tempo, no seu Centro de Estudos Ibéricos, vultos como o filósofo universal Fernando Savater, o ex-Presidente da República Mário Soares, o antigo Ministro das Relações Exteriores de Espanha, Fernando Morán, ou o Catedrático das Universidades de San Diego, Princenton, Harvard e Barcelona, Cláudio Guillén.
O Director Honorífico do Centro de Estudos Ibéricos reconheceu, neste seminário sobre “A Ibéria no contexto europeu” (26 e 29 de Novembro de 2001), que estava dado mais um passo para «realizar uma sugestão um pouco onírica de criar um Centro de Estudos na Guarda que contribua para alterar o conhecimento imperfeito dos dois Países».
Deve ser «um centro de reflexão cultural em relação aos problemas que a Espanha nos põe e que nós pomos à Espanha, esses problemas que vêm da história, saber realmente quem somos, o que fomos no passado e o que somos no presente e o que nos espera no futuro».
É que «Portugal e Espanha viveram sempre destinos profundamente análogos, por vezes mesmo paralelos». No entanto, «muitas vezes tomámos as dores uns dos outros, especialmente aquando da perda das nossas colónias quando, como peninsulares, compartilhámos as duas faces do conflito». Eduardo Lourenço afirmou também que «não há espaços mais europeus do que a Península, é uma espécie de Europa antes da própria Europa». Esta Península que «não se diluiu na Europa, ela é que nos entrou em casa e se diluiu ela própria na Península, numa história de fascínio e ressentimento».