Discursos de Eduardo Lourenço

Lembrança espectral da Guarda

Quem vê o seu povo vê o mundo todo. – Provérbio familiar –

J`ignore pour qui j`écris mais j`sais pourquoi j`écris. J`écris pour me justifier. Aux yeux de qui? Je vous l`ai déjà dit, je brave le ridicule de vous le redire ….. Aux yeux de l`enfant que je fus. – Bernanos –

Queiramo-lo ou não, todos nos escrevemos naquilo que, com razão ou sem ela, os outros recebem como obra nossa. Alguma coisa de mim deve estar no que, ao longo de quase meio século e sempre como por acaso, fui escrevendo e pode justificar, no âmbito cândido e protegido da nossa dura e arcaica província, esta homenagem.

A presença do Senhor Presidente da República e o apadrinhamento de tantas personalidades marcantes no campo da acção, da literatura, da arte e do jornalismo conferem-lhe um sentido e um eco que não podia ser previsto pelos modestos conterrâneos que a imaginaram.

Em semelhante ocasião gostaria de forçar a íntima repugnância que sempre me tolheu, como se convivesse comigo o célebre demónio socrático, em me assumir como autor, como um eu, não só responsável, mas minimamente solidário com aquilo que em princípio nasce de mim, me implica, compromete e me serve de ponte para os outros. Mas sou incapaz de viver a minha relação com o escrito de outra maneira que sob a forma de máscara. O meu destino literário, se é um, foi o de me empregar nos “outros”, mortos ou vivos, e dizer através deles aquilo que não sei, não posso ou não quero dizer com absoluto senhorio. Aquele que eu atribuo aos criadores em sentido pleno e que tanto espanta, o meu amigo Vergílio Ferreira. Não sei quem me fala e não será hoje que o aprenderei.

Há anos, em Paris, único da minha espécie, dentro da embaixada de poetas e romancistas que com tanto brilho representaram a nossa cultura, fui apresentado por Eduardo Prado Coelho ao público da Sorbonne como “o amigo dos Poetas”. Está certo. Da Poesia seria ainda melhor. Mas por não ser sujeito dela não posso investir-me dessa função sagrada que desde sempre confere aos seus cultores o papel de “vates”, de profetas ou pastores do ser, que quer dizer, de voz essencial da comunidade. Pertenço, no melhor dos casos à espécie critica que está para a Criação como na Idade Média a Filosofia estava para a Teologia. Não é modéstia – imodéstia da minha parte, é justa percepção – pelo menos assim o penso – do meu lugar próprio dentro do complexo labiríntico da Cultura que em última análise não é outra coisa do que consciência natural da Criação, espécie de acompanhamento melancólico da nossa mão esquerda, glosando sempre em atraso a vaga irresistível da inspiração digna desse nome. Melancolia de quem está separado dos cumes mas deles vive ou para eles indefinidamente aspira. Todavia, por assim ser, também mais obrigado me sinto, aqui, como eu sem máscara, no inconforto da minha nudez, a agradecer sem restrições esta excessiva festa que os meus conterrâneos quiseram oferecer a quem tão cedo partiu para longes terras sem partir da sua companhia.

Quis a histórica vila de Almeida associar-se a essa festa e a capital do nosso distrito conferir foros de acontecimento cultural aquilo que já me teria sobejado como íntima romaria do coração e do espírito ao lugar natal onde tudo quanto me importa – afeição dos próximos e gosto da sua companhia no meio de uma natureza que era como o corpo intemporal de Deus – me foi dado de uma vez para sempre. Todos nós, nascidos numa aldeia ou num bairro da mais cosmopolita das cidades, nascemos num sítio igual e tivemos o gosto da infância que é o mesmo da vida que ainda não caiu no mundo. Como os povos felizes as infâncias não têm história. São os outros que no-la contam ou recordam. A nossa vida passa-se a inventar a infância que não tivemos e a tentar merecê-la. Para mim, o encontro com o mundo – o que chamo queda – foi precisamente esta cidade onde estamos. Digamos a primeira escala de uma errância que não terminou. Nos anos trinta – em 1931 – a Guarda, esta cidadezinha alcandorada e fria, então ainda lembrada da primeira República, foi, para mim, a cidade, como Roma era a Urbe para o cidadão romano.

Atrás de mim ficava, para sempre, separada de tudo, à margem e no centro de tudo, a aldeia “piccolo mondo antico” para me lembrar de um título de Antonió Fogazzaro, lido na adolescência. Esse pequeno mundo não o posso evocar senão através de uma velha página de “Diário” sempre adiado, onde em aí ouso assumir-me como seu autor. É a um Tu imaginário que confio a minha indizível vivência desse mundo vivo e morto:

“Tu” habitaste um planeta desaparecido. Não podias adivinhar que o que te cercava era mais estranho que a face escondida da lua. Se tivesses sabido que o granito triste, as mãos terrosas, as camisas encardidas da tua gente, seus gestos, suas palavras já haviam morrido há séculos e te batiam no rosto como a luz das estrelas há muito extintas terias sido mais atento. Assim tudo te passou com água entre os dedos. Mais tarde podias ter registado essas vozes, o diálogo entre fantasmas que elas não sabiam ser, mas ninguém te preparava para Óscar Lewis da tua própria gente. Tu habitaste entre gente medieva, medievo tu mesmo. E foi o melhor que te aconteceu. A família da tua infância, a tua aldeia árida e pobre, hoje dissolvida em poeira e saudade estrelar viviam sem contradição alguma no neolítico, na pré-história, na idade média, um pouco já – quando alguém ia à estação de vilar Formoso, no século XIX, e não sabiam quase nada do século XX que as ignorava. Nem água encanada, nem luz eléctrica que só quarenta anos mais tarde viria alumiar um mundo perdido. A água espera ainda, e é bem feito para um povo que se chama Rio Seco.

Poucas vezes a tão desencontrados tempos foi oferecido um espaço tão claro. Os perfis humanos como as luzes recortam-se num espaço de cristal. Cada casa tem seu nome, cada árvore, cada animal, cada criatura, cada parcela de terra. Tudo é claro, silencioso e vibrante como o quadrado do cemitério que remata o povoado como uma demonstração sem réplica. Também ele mudou. Está menos empapado de mortos. A antiga poeira anónima não foi renovada. Os quatro ciprestes de cada canto estão quase secos faltos de branca argila, mais mortos que a morte. Já não se persignam os garotos escarrapachados nos burros que vão à lenha menos esfarrapados que há quarenta anos. Alguns assobiam ainda para esconjurar alguma veleida póstuma dos seus parentes. Muitos pensam com os pias já longe ou noutros continentes que “eles” não se misturarão a essa terra seca, nem ficarão sob cruzes precárias confundidos entre os montículos cobertos de erva sem quase uma flor. Nenhum pode imaginar que este quadrado branco era para os pais a barca escura que conduzia aos céus. Durante centenas de anos, as Teresas, as Marias, os Josés, os Antónios aqui esperaram a ressurreição que não veio, e eles já não esperam. Mas nem podem imaginar que para a criança de há quarenta anos este minúsculo quadrado de terra teve a largura da Morte e o sabor de uma vertigem onde se afundava o sol e as constelações.

Era o tempo em que essa aldeia era um organismo vivo, uma espécie de homem colectivo, separado do mundo que o desconhecia e ele desconhecia, homem de dura enchada e de seus parcos frutos. Entre a fome e o sol todos os dias eram seus. Pouco a pouco esse vasto mundo invadiu-lhe a casa, separou-se de si mesmo convidando-o para manjares mais suculentos que nunca mais lhe saciarão a antiga fome. Envergonhou-se dos tamancos, das meias de algodão, do casaco de sorrob pôs um pouco mais de açúcar no café, aprendeu a ler e a esquecer o que lia e conheceu em fim a sua milenária miséria. Em quarenta anos passou da planta de Pan e das aventuras de Dafnis e Cloé ao esplendor imaginário da televisão e seus amores piegas, seus locutores ventríloquos vendedores de elixires divinos. Só é pena que tanta felicidade e tanto sonho a domicílio nem cura fome de séculos nem faça florir o deserto. As novecentas almas do povoado recolheram à sombra ou esperam por ela. Já não habitam essas cozinhas enfumadas de trogloditas felizes. As mais audazes partiram à busca de alimento, música, cinema, … Estão em África, no Brasil, em França, na Alemanha e até na Espanha. Lá é o São Pedro deles. Este, a minha aldeia sem história de ouro e sangue, navio encalhado na meseta hispânica, enterra-se docemente na sua inexistência, com todas as luzes apagadas e um carregamento de fantasmas coberto de antigo suor e de mais antigas lágrimas. Quem o pudesse ressuscitar …”

Deixando a aldeia deixara a comunidade para entrar no que confusamente adivinava ser a sociedade. De certo modo, cidade alguma, de Coimbra a Lisboa, de Paris a Nova Yorque, de Hamburgo a Nice, me causará maior surpresa que este pequeno mundo onde a pequena tribo familiar estava perdida entre outras tribos, onde certas casas me pareciam palácios com as suas janelas de cristal talhado, e altas portas senhoriais, detrás das quais entrevia uma vida misteriosa, de uma humanidade diferente, …………, como nos sonhos.

Da verdadeira Guarda só me eram familiares o frio, neve, o nevoeiro que hoje veio envolver-nos, o céu varrido, a aparência sideral que anos mais tarde Vergílio Ferreira, evocará magistralmente em Estrela Polar. Nesses oníricos anos da minha terceira classe a Guarda era só não ser São Pedro, a perda do ninho, o primeiro encontro com os outros. Dois anos mais tarde entraria aqui no Liceu, primeira saída do reino protegido de toda a infância que Sartre invoca em Les Mots, e também o primeiro degrau de um percurso sem fim – o que se chama um curso, e é uma batalha incruenta para descobrir o nosso papel na vida. Pelo menos assim era para os filhos de modesta extração, como os meus irmãos e eu que vínhamos de aldeias remotas para ser gente. E que deixados a si mesmos aqui muitas vezes se perdiam em cafés parados no tempo, dignos do cinema neo-realista. A rádio, nas tardes imóveis dos domingos, enchia o jardim em frente do quartel com a musica melancólica de fados, de tangos ou de notícias de um mundo onde se preparavam desastres que, como sempre não nos diziam respeito.

Pela idade, mas também creio, por alguma coisa que era própria desta cidade – como a radiografia artística de Vergílio Ferreira mo confirmou – a Guarda ficou sendo para mim, uma realidade espectral. Uma espécie de Marienbad com as suas altas peanhas encimadas por bustos de personagens misteriosos como num cemitério no deserto, ou uma pequena Davos – Platz , com o seu célebre sanatório de onde se escoavam às vezes para as ruas da cidade criaturas pálidas que atravessavam desviando-se das pessoas sãs, como fantasmas. Só uma tarde soube que era lugar de sonhos de outra espécie, desses sonhos que só as pequenas cidades secretam, sonhos de ambição política, de saber, de poder social que tanto beirão – alguns aqui presentes – ilustrarão. Menos conhecia os poetas, com excepção do autor de Luar de Janeiro, Augusto Gil, um António Nobre sem pose mas também sem o seu génio, que andava a justo título nas selectas, com a celebérrima “Balada de Neve”, que parece ter deixado traços num famoso poema de Pessoa. Dos vivos, vi passar na rua, envolto em soturnidade, Nuno de Montemor a caminho do lactário desta cidade, um autor da nossa província profunda que evocava para um largo público católico do país, dramas e paixões do mundo eclesiástico.

Bem se deixa ver que nada fiz na Guarda ou pela Guarda que mereça a atenção e o desvelo com que hoje rodeia um filho do distrito que como disse em Almeida, foi mais pródigo. Mas a Guarda deixou-se sem dúvida a sua marca de cidade que imitava nos seus ritos iniciáticos a lendária Coimbra que mais tarde seria, senão a da vocação, ao menos a pátria da iniciação cultural. A adolescência é o tempo incerto para toda a gente. Naquela época abordara a este páramo pátria o sonho portátil que chamamos cinema. Aquele que será para mim como o livro de imagens da História Sem Fim. Nas ruas cantava-se o “Teodoro não vás ao sonoro”. Aqui vi o primeiro filme de “cowboys” que não tinha ainda a dignidade dos Westerns, Tom Mix, rei dos cavaleiros e uma versão extraordinária de Romeu e Julieta com Norma Shearer que podia, à contade, ser avó de Romeu. Pelo menos mãe. Pareceu-me sublime.

Na adolescência vivemos com naturalidade no sublime. E se aí ele não nos eleva um pouco acima de nós mesmos, corremos o risco de o falhar para sempre. Foi dessas alturas, que eram da vida, de sonhos vagos, de vertigens inocentes e do coração, que o tempo da Guarda foi feito para mim. E é assim que se conserva em qualquer desvão da minha memória esburacada. Muitos anos mais tarde, vindo de Lisboa a caminho de França, já então a minha segunda pátria por escolha e enraizamento familiar, percorri a minha antiga cidadezinha, entretanto crescida e moderna, como um extra-terrestre. Onde ninguém nos conhece somos espectros de nós mesmos. A cidade estava quase deserta. Era noite. De súbito, reconheci, encostado contra os cunhais da Farmácia da Misericórdia, onde há séculos, como diria o Eça, se discutia a política deste mundo e do outro, um antigo amigo do meu Pai parecido com George Sanders, “play boy” que em cada fim do mês largava para Lisboa para jogar numa noite o seu parco ordenado. Meu Pai, pai de tanto filho, era o contrário desse personagem mas essa extravagância fascinava-o. Não ousei falar-lhe. Não me quis confrontar com o meu próprio espectro. O tempo da Guarda tornara-se legenda. Legenda minha, mas que quis evocar para encontrar alguma justificação para estar aqui, ao abrigo dos olhares complacentes e benévolos, não ardendo como um fósforo frio, à maneira do muito revisitado Pessoa, mas recordando águas passadas que pelo milagre da estima alheia, se tornaram vivas. A todos os que pela sua presença neste momento me fazem existir com mais força e convicção do que se chama a minha vida, em perpétua busca de si mesma, o meu fundo agradecimento.

 

Oito séculos de Altiva Solidão

Neste século, há apenas 30 e poucos anos, Vergílio Ferreira consagrou à Guarda da sua adolescência, fremente e inquieta, a mais espectral evocação que o antiquíssimo burgo de D. Sancho mereceu até hoje. Não por acaso, esse seu romance se chama Estrela Polar, estrela álgida, solitária, a quem incumbimos da missão de nos guiar na noite escura do mundo. A ele voltarei.

O mesmo Vergílio Ferreira, sempre tão presente na minha lembrança, num discurso memorável, em Bruxelas, disse que da nossa língua se vê o mar. Ele pensava, como todos nós, na numerosa corte de poetas, que desde os cancioneiros a Sophia de Mello Breyner, passando por Camões, Antero, Nobre, Pessoa, envolveram a nossa imagem de portugueses nas ondas do mar que nos foi destino. É curioso que o tenha dito, porque da sua língua natal, da língua desta beira serrana e da sua capital, cercada de um silêncio de séculos, físicos e simbólicos, não se vê o mar. Sabe-se que existe, pressente-se talvez, adivinha-se, sonha-se com ele como Adamastor com uma Tétis que o não anda cercando. O mar é, e foi-nos, porta para o mundo. Mas o destino desta velha terra, consagrada à defesa e vigilância de um pequeno reino, que não sabia ainda que seria grande e disperso como um arquipélago, não era o da viagem mas o da vigília, do ensimesmamento e, em todos os sentidos do termo, da solidão. Da grande solidão das Beiras falou o etnólogo e antropólogo Jorge Dias. Falemos nós da sua efectiva interioridade, mais filha da história do que da geografia, não para assinalar uma condição de isolamento difícil de viver e aceitar, mais a mais num espaço tão pequeno como o nosso, em que tudo está próximo de tudo, mas para a pensar.

Só em termos modernos, o ser interior é vivido e percebido como uma espécie de maldição ou fatalidade. A nossa velha Beira, a sua capital, que hoje se recorda de um longo e solitário passado, só é interior depois que Portugal se define por um mar que hoje nem fica longe para ninguém, mas então era como um outro planeta.

Nos seus começos, esta cidade e a velha Beira, que dominava altaneira, foram não apenas fronteira mas coração de Portugal. Então o nosso horizonte vital, o nosso mar de terra e pedra é a meseta contígua, matriz de onde nos separámos, espécie de deserto de onde durante séculos, inquietos como no romance de Dino Buzatti, esperávamos, não os tártaros mas os nossos excessivamente próximos castelhanos. Estas terras, esta cidade e a muralha intermitente de castelos com que o seu se emparceirou, não eram ainda a ex-fronteira sem emprego de um país com os olhos no vasto mundo, mas os guardiães da casa comum que confiava na sua vigilância. Em nome de El-Rei D. Sancho ou do previdente D. Fernando fora criada e amuralhada para ser, em todos os campos, a guarda desse reino fraco e vulnerável. Não éramos, no sentido preciso, realmente a Guarda, não éramos o far-west ou o far-east de um país que nos voltava as costas, mas a sua sentinela, a sua guarda avançada, entrada de reino e saída natural e futura para a vasta Europa, além da Espanha.

Os oito séculos que celebramos têm muitos tempos. Antes que a história, que não é fatalidade mas obra nossa, convertesse a fortaleza viva e útil dos séculos medievais em sentinela espectral, sobre que cairá, insone, a neve dos dias e com ela o desconforto, o sentimento de estar parado ou desfasada do resto do país. Esta Beira foi o Portugal profundo, o Portugal do arado, da cruz e da espada confundidas como era lei do tempo, terra e gente em luta com uma natureza avara, ganhando com suor e sangue o que ninguém lhe dava de graça, e sempre pronta para ir não para o mar mas além dos mares, para sítios que nem os sonhos avistam, fosse o Brasil, fosse o Oriente, fosse a Austrália, fosse o Canadá. Nesse mundo, e nessa época ninguém sofria de interioridade. Simbolicamente sede de um dos mais prestigiados bispados do reino, a Guarda não sabia – ninguém se preocupava muito com essas fantasmagorias – que um dia seria por dentro menos do que era então, uma cidade coroada por uma Sé fortaleza, navio de pedra ao alto de uma montanha. E esse navio às avessas é ainda hoje o brasão de uma história que só espera de nós que descubra outra vocação, outro rumo, para ter tanto sentido como o tinha nesse tempo em que a sombra de Castela não nos deixava dormir.

A evocação ou a referência ao passado só é interessante por pôr em causa o presente e explicar as suas nostalgias ou o seu mal-estar. Ser interior hoje, ser capital ou cidade de interior é vivido como punição, como empobrecimento efectivo e simbólico, como fatalidade. É verdade que a cidade de D. Sancho pagou caro o seu papel de sentinela, ao mesmo tempo real e ilusório. Que aceitou com demasiada passividade o destino barroco e mais tarde o administrativo que o século XIX lhe proporcionou. E que lhe tem custado acompanhar a tumultuosa metamorfose de um Portugal que está apanhando ao mesmo tempo todos os comboios perdidos que nos afastavam da Europa. Não é a única. Mas talvez como nenhuma se encontra hoje confrontada com um desafio a si mesma, de perfil desconhecido noutros tempos, mesmo próximos. E, como muitas outras entre nós, mas de uma maneira aguda, dividida entre o que se pode chamar a miragem folclorizante de si mesma e a miragem futurante de uma vida contemporânea da Internet, onde, paradoxalmente, sentir-se isolado do mundo nem é álibi nem desculpa, tão impossível o parece. Ao menos virtualmente.

Cultivar as nossas raízes, inspirar-se nelas ou delas para sentir-se como uma espécie de barca que voga no tempo, não é nenhum pecado. A Beira, a nossa Guarda, são terras de larga e funda memória. A nossa alma arcaica, quer dizer original, e sobretudo imemorial, fazem parte de nós mesmos sem saber como a somos e o que somos nela. Mas a tentação folclorizante é um pouco a perversão desse tempo imemorial e interior, a vontade de querer voluntaristicamente estar num tempo que já não é o nosso. É o presente que vivifica todos os passados. O nosso está nas pedras que já lá estavam antes de sermos reino e cidade querida de reis. Está em costumes que ainda têm em nós ecos insuspeitados. Faz parte do imenso arquivo de afectos como diria o actor e poeta Américo Rodrigues, que fizeram de nós o que somos, particular e fundo como se fôssemos irmãos gémeos das pedras que na montanha nos parecem gente viva. É bom não perder nada do que nos identifica, mesmo o que só se torna nosso por graça dos céus. Se não temos um património provincial tão rico como outros cantos de Portugal, não é desprezível, é o nosso e na sua relativa modéstia está certo com tudo quanto somos de nu e depurado. A pequena capela do Míleu pode ser um símbolo da nossa comovente riqueza de pobres, tão bela como uma catedral. Nós não somos o Minho e a sua ridente paisagem. Somos assim, sem seduções exteriores, fiéis a esta inconsciente alma de semeadores de centeio e cortadores de pedra dura para resistir ao vento, à chuva e ao peso dos anos. Sob os pés temos todos uma herança mais de granito que de terra e com ela um passado que nunca mos deixará perder na areia do presente e na confusão prodigiosa do mundo. Podemos incorporar dele tudo o que precisamos, até tempo dos outros que não sabemos quem eram e de repente nos fizeram canteiros pré-históricos. Émulos, diz-se talvez com o costumado exagero lusitano, dos Miguel Ângelos de Lascaux e Altamira. Bem precisávamos desta oferenda dos céus, destas abençoadas gravuras do Côa, outrora fronteira entre nós e Leão, para colmatar o nosso defice de mitologia cultural, no sentido comum do termo.

As nossas criações, os nossos grandes homens, por culpa nossa ou deles, não tiveram a fortuna de se tornar ícones nacionais. Nem cronistas ingénuos que, por patriotismo, inventavam cortes não havidas como Bernardo Brito, nem Rui de Pina, culpado por Herculano de não ser Fernão Lopes, nem um desses conquistadores que fizeram o nosso Império, nem sequer um Zé do Telhado digno de legenda para nos vingar de tanto esquecimento. Este sim é que será o tal preço da interioridade. Também não tivemos um Aquilino nem um Torga para mitificar as nossas terras de Deus e do diabo. Tivemos um Vergílio Ferreira para apreender como ninguém a solidão sideral e, ao fim e ao cabo, vivificante, dos ermos e dos páramos onde o destino nos fez nascer. Mas toda a gente se lembra da Aparição, hino ao mais solar, embora também solitário, recanto de Portugal e pouca se lembra de Estrela Polar, elegia da cidade, do luar de Janeiro e suas frias claridades, ao menos por fora e ardentes por dentro.

A nossa mitologia de beirões é modesta mas não é nada que me desagrade. Ela corresponde a uma interioridade que não é apenas exterioridade, distância onde a vida é suposta ser melhor (o que não é da ordem da prova, mas realmente mais tumultuosa, mais complexa e mais divertida, em todo o sentido do termo) mas é uma interioridade que é sobretudo intimidade, longa conversa de séculos sem eco planetário nem sequer caseiro. Assim foi no passado ou assim pensamos que fomos, pelo menos quando nos contemplamos nos espelhos, acaso mais imaginários que reais onde os outros se nos mostram mais satisfeitos de si do que nós o somos. No presente, esta Beira e esta cidade multicentenárias e mais jovens do que eram nesse passado sem regresso, adivinha-se ou apraz-me imaginá-las como um grito suspenso, uma sufocação insuportável e inconformada com a sua herança insuficientemente partilhada com o resto do país e do mundo, uma espécie de grito contido à espera de hora e vez.

Li, não sei onde, que as gentes desta cidade de alturas se interrogavam seriamente a respeito do que devia ou deve ser a sua vocação. Creio que o texto não se referia a nenhum projecto ou programa de vida de configuração pragmática, de tudo quanto é necessário e urgente para que esta velha e um pouco melancólica capital de distrito ascenda aos níveis de conforto, de vida, de progresso cultural, dignos de uma cidade moderna neste tempo e em Portugal. Suponho que a Guarda ou quem escrevia por ela, sonhava com qualquer coisa que lhe desse um perfil particular, que lhe definisse, se não uma missão, uma vocação, que desse sentido ao seu futuro. Estar na fronteira como sempre esteve, mas agora mais próxima da Europa do que o resto de Portugal, não acordou nela outras exigências e uma outra vocação? A Beira, com a sua cidade, está mais no caminho da Europa até nós do que de nós até à Europa. Foi sempre assim. A Europa passa-lhe à porta, mas pouco mais do que isso. Compreende-se que um genérico projecto europeu a não contente ou exalte ou esteja fora do seu alcance. Esse é o projecto de Portugal no seu conjunto.

Que resta à Guarda? Mobilar melhor a sua estelar solidão histórico-cultural, sem ter, enfim, o sentimento de a quebrar? Só os caros cidadãos egitanienses podem definir os seus sonhos e as suas aspirações. Para quem de dentro e de fora contempla a nossa altiva solidão, o caso não parece desesperado. O mar, que a Beira e a sua cidade não receberam em companhia, está há séculos diante desta cidade. Como ameaça mais ou menos onírica, mas simbólica para a sua e nossa identidade. Já não se chama Castela, chama-se Espanha., não porta para a Europa, mas a Europa vizinha, a Europa próxima, interland natural do nosso rectângulo mágico. Em suma, que a mais lusitana das fronteiras, no momento em que elas se apagam, podia ser a mais ibérica e dialogante das terras, a do diálogo aberto e vivificante com o deserto de que nos separámos e continuou a florir em nós no silêncio. Cumpre-nos a nós ser o elo natural do novo diálogo em que a invenção da Europa converteu a Península. O futuro o dirá.

E aqui suspendi o texto porque parecia que estava cometendo uma heresia, ou que as minhas palavras fossem tomadas escandalosamente. Não é o caso. Eu creio que esta cidade está mais vocacionada que nenhuma outra, e este espaço, para ser o lugar de um diálogo, necessário mais que nunca, com aqueles que foram os nossos adversários durante séculos.

Eu penso que nesta cidade se podia imaginar qualquer coisa como um INSTITUTO DA CIVILIZAÇÃO IBÉRICA, onde os nossos laços comuns que só Oliveira Martins foi capaz de apreender fossem repensados para que nós soubéssemos efectivamente quem somos e onde estamos, não tão isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar dos outros, para sabermos quem é o outro, com quem devemos dialogar e assim nos defender de uma maneira diferente da que foi a nossa durante séculos. Essa é a vocação que eu desejo para a Guarda. Que ela seja hoje a sentinela dum futuro comum para uma Ibéria que é um dos pólos desta Europa onde todos nós queremos estar e, onde querendo ou não, já estamos.

 

Todos nós ibericos

Por ocasião do Oitavo Centenário da nossa cidade surgiu a ideia de criar nesta velha terra de fronteira entre Portugal e Espanha, um Centro de Estudos Ibéricos. A sugestão teve a boa fortuna de ser apadrinhada, de um lado e de outro dessa histórica fronteira, pelas duas instituições que, ao longo dos séculos e, em prioridade, foram um modelo da universidade peninsular: Salamanca e Coimbra. Sem esse patrocínio, não poderia ser levado a cabo o ambicioso projecto concebido para esse Centro: o de contribuir, não apenas para um renovado conhecimento das diversas culturas da Península, mas para o estudo da Civilização Ibérica como um todo.

No estado actual do mundo, ameaçado ao mesmo tempo da uniformização em termos de tecnologia e de disseminação em termos de identidades culturais sobre si mesmas fechadas, a Península Ibérica oferece um exemplo raro de uma Comunidade Cultural de longo passado comum e de heranças partilhadas que a institui como um dos espaços privilegiados onde se joga o sentido da História presente e futura. Já é tempo de cultivar essa vinha comum com um interesse e um fervor incomuns.

A sombra tutelar de Oliveira Martins, criador do próprio conceito de Civilização Ibérica e autor da História dessa mesma civilização, inspira este projecto. Sabemos como Unamuno o admirava e comungava no mesmo ideário Ibérico. Mas o que era apenas ideologia ou visão há mais de um século é hoje conveniência e imperativo dos novos tempos.

Ao conhecimento e à clara visão do que foi e continua sendo a versão peninsular da Europa se deve votar o nosso Centro de Estudos Ibéricos tanto mais que dela faz parte integrante a primeira, e até hoje nunca ultrapassada, vocação planetária da mesma Europa. O que foi sonho do mundo merece ser repensado para saber melhor quem fomos,quem realmente somos e quem podemos ser. Todos nós Ibéricos.

Eduardo Lourenço, Abril de 2001

 

A Península como Problema Europeu

No livro “Nós e a Europa” já tive ocasião de abordar tangencialmente a questão da “Península como problema europeu”, mas aqui desejaria enfocá-la de outra maneira, em função da totalidade peninsular. Quer dizer, não como o historial da nossa relação complexa com a Europa – a título de portugueses, a título de espanhóis, na sua diversidade de castelhanos, catalães, bascos, etc. – mas como a península no seu relacionamento global com essa Europa. É uma hipótese de trabalho que pode ser discutida mesmo como hipótese.

É sabido que Michelet resumiu a Inglaterra com um pleonasmo provocante: “a Inglaterra é uma ilha”. Queria ele dizer que, tendo-se isso em consideração, tudo o mais era mera consequência. A nossa península não é obviamente uma ilha, todavia uma certa perfeição das suas formas, as que condicionam a nossa imagem dela, faz com que esta imensa península europeia – o seu ponto extremo da Europa – sugiram uma configuração de ilha sobretudo quando ela está completa. Quer dizer, quando não é aquela representação que vem nos mapas meteorológicos da nossa península em que Portugal ou é um espaço, quase virtual, onde não chove, não correm rios para o Atlântico, ou então aquela outra imagem pura e simplesmente onde a Espanha se representa a si mesma como aquela famosa pele de touro célebre. Aí, sem o nosso rectângulo nessa altura temos a impressão de ter caído no Atlântico. Mas quando olhamos o mapa da Europa e verificamos o que é essa Península, o que nos fascina, o que nos impressiona, é a sua totalidade, a sua imagem perfeita que se podia imaginar que fosse realmente uma ilha.

Talvez por isso, o mais célebre dos nossos romancistas não fez mais do que ceder à inspiração da geografia imaginando a nossa península como uma ilha e pondo-a a derivar no Atlântico em direcção ao Sul. Com isso, José Saramago sugeria que a península não era europeia ou que ele talvez não desejava que o fosse. Essa extravagante e original ficção é um discurso acerca da península (não apenas nem sobretudo de ordem geográfica) suspenso pelo fio de um certo complexo de ressentimento do que somos ou nos sentimos como peninsulares em relação à Europa mas é igualmente uma reivindicação da nossa autonomia ibérica.

É o que eu nesse livro ”Nós e a Europa” designei como dupla postulação em relação à Europa: ressentimento e fascínio. No tempo em que nós, peninsulares, tínhamos o sentimento de não sermos vistos ou aceites como europeus de primeira, esse reflexo ou sentimento de diferença e de uma certa excentricidade em relação à Europa tinha a sua explicação, embora não a sua justificação. Isso sucedeu quando a Península entrou no que chamamos a idade barroca separando-se histórica, e sobretudo simbolicamente, de uma Europa que entrava plenamente na era burguesa, que tinha no protestantismo a sua tradução ideológica e, mais do que tudo, por complexas razões, começava a criar entre a prática científica além-Pirinéus e aquém-Pirinéus uma distância que tanto nos faria sofrer e tão graves consequências geraria, e que ainda hoje, pelo menos no que diz respeito a Portugal, são visíveis.

Começava então a problematizar-se a nossa relação com a Europa e essa Europa a problematizar a Península. Na verdade, quando tomámos maior consciência dessa Europa, já então a duas velocidades, não era tanto a Europa que se constituía num problema para a península, mas a península que era problematizada por essa Europa.

Hoje percebemos melhor que aquilo que mais tarde se transformou num tópico de que a península era uma civilização, uma cultura em processo de decadência, quer dizer, em vias de se afastar do paradigma clássico da modernidade, tinha pouco a ver com o olhar que a Europa da revolução científica, económica e depois política e ideológica era ou considerava a península. Era sobretudo o nosso próprio olhar de antigos e naturais actores de história da Europa do séc. XV e do séc. XVI, conscientes de ter saído dos seus respectivos esplendores. Foi só bem tarde que um certo discurso das luzes, já nos finais do séc. XVIII mesmo com os precedentes na Espanha de gente como ………………… e outros e na França de Voltaire e Montesquieu nos começou a habituar à ideia e a insistir no nosso famoso atraso e a dar-nos conselhos para que o resolvêssemos.

No séc. XVII – no famoso século do Génio, o de Decartes, Pascal, Leibniz e Newton. – mas, sobretudo, no das sociedades científicas que começavam a marcar a paisagem cultural europeia através das quais a ideia e o sentido de progresso entrava na história, – ninguém considerava as pátrias de Cervantes, de Lope, de Calderón, de Gracian, de Francisco Manuel de Melo como uma ilha em vias de se separar culturalmente da Europa. O século de Luís XIV não tem leitura sem a osmose profunda entre a cultura peninsular – então no seu esplendor – e os seus Corneille, os seus Racine, os seus Mollière; e bastava Cervantes para que não estivéssemos separados, como depois nos julgámos, da Europa mais vanguardista. A cultura Europeia caminha, como caminhou sempre, a ritmos diferentes e o que era novo era essa tendência a afastar-se da aventura moderna por excelência, aquela que obras como Daniel Deföe ilustraram, mas que vendo bem, provavelmente não existiriam se antes dele um homem, o autor de “ D. Quixote” não tivesse existido e lançado a Europa no caminho das suas próprias aventuras ao mesmo tempo reais e oníricas.

Na verdade, mesmo nas épocas de maior distanciação entre as diversas culturas europeias, a trama da sua cultura foi sempre mais unida do que podemos imaginar. Hoje e aqueles que têm uma visão comparatista em geral das culturas e das civilizações – e tenho aqui ao lado um eminente representante desse tipo de olhar, Claudio Guillén – sabem até que ponto de facto essas famosos abismos e separações, são muitas vezes mais fantasmáticos do que verdadeiramente reais.

Esta ideia de que à medida que se constituía, a nova Europa era para a península um problema, não apenas na ordem política, mas civilizacional e cultural, tem alguma razão de ser. Se não seria inexplicável que tivéssemos interiorizado tanto a famosa expressão que havia alguma coisa que separava a Europa de Além-Pirinéus da Europa de Aquém-Pirinéus. Talvez devêssemos convir que, antes de mais, a Península onde um dos seus povos ou cada um por sua conta se tinha efectivamente retirado, em parte, da cena europeia, confinando-se ao áquem dos Pirinéus antecipar a fabulosa deriva que, mais tarde, a “Jangada de Pedra” de José Saramago vai alegorizar. Essa Península “aquém” dos Pirinéus não derivou, não fugiu para os seus domínios da América pois que o já tinha feito de algum modo no século XVI, mas a partir dessa época refugiou-se neles.

Nós, portugueses, usamos muito a expressão definidora da nossa atitude intra-peninsular: dizemos que vivemos ou temos vivido de costas voltadas para a Espanha. Bem mais importante e decisivo foi que cada um de nós mesmos começasse a estar voltados de costas para a Europa, para essa Europa além Pirinéus. A certa altura tinha que chegar o momento em que pensávamos que a Europa nos tinha também voltado as costas – relativamente, entenda-se, pois o fim da colonização espanhola da América – como da colonização menos acentuada de Portugal no Brasil – foi o de encontrar lá as razões de estar presente na Europa.

O destino decidirá também outra coisa, mas os galeões que a Europa de Morgan e Surcuf aprisionavam, traziam também prata para investir e nos integrar, da maneira mais activa possível, justamente nessa mesma Europa. Só nesse sentido, e em termos de política e de guerra a Europa era problema para nós e nós um verdadeiro problema para a Europa em ascensão, península na sua face ibérica, transatlântica e asiática era um objecto de presa ou de contenção. A Península que constituiu questão para a Europa, se isso tem verdadeiro sentido, foi aquela que desde a chegada à Índia até aos reinos de Filipe II e III tentou impor ou jogar um jogo igual com as potências europeias mais representativas: a Inglaterra ou a França. Portugal, nessa época integrado no projecto político da Casa de Áustria, é então mais europeu do que nunca mais o será. Sê-lo-á ainda na Guerra dos Sete anos, onde a Europa, independentemente do seu espaço de colonização se bate entre ela ou em família. Nessa altura estávamos a ser Europa como um todo à força circunstancial.

Foi a Revolução e as guerras napoleónicas que puseram fim a esse artificial mas simpático equilíbrio. Com a chegada dessa era numa Europa que era ainda a da guerra de rendas e com a Revolução, entrámos na época de ferro europeia, a que está terminando sob os nossos olhos e somos excentrados da história da Europa. É a partir de então que as nossas relações com a Europa, em todo o caso na vertente guerreira, económica, política e até cultural, se problematizam. É então que a Europa se torna um problema para a Península.

Nós, portugueses, temos muita dificuldade em conceber como um todo o corpo peninsular. Como história, como política, mesmo como cultura, em sentido profundo, a Península foram sempre “penínsulas” que se expressaram quer nos seus conflitos internos, quer nas suas relações diferentes com a Europa e com o mundo. Portugal e a Espanha viveram, durante séculos, destinos extremamente análogos, por vezes paralelos, mas sempre como dois actores. Vivemos juntos, por exemplo, o período do fim da colonização espanhola na América? Vivemos juntos, – ou a Espanha viveu a nossa perda do Brasil como qualquer coisa que a afectasse a ela directamente? Vivemos nós a perda, inclusivé, do fim do grande império espanhol que tem lugar no fim do século XIX em Cuba como se fosse qualquer coisa que nos atingisse profundamente – e atingia – mas para o vizinho que suportava a dor e o peso e a reflexão dessa perda? Tomaram os espanhóis as nossas dores quando a Inglaterra nos enviou um ultimato colocando-nos naquele lugar que em termos de força e de potência e de poderio ela considerava que era o nosso, quer dizer o mais subalterno realmente possível e pouco europeu no sentido imperialista em que a Inglaterra se afirmava? – Não.

Como peninsulares, compartilhando a dupla face do conflito, portugueses e espanhóis só realmente viveram e ressentiram em comum a tragédia espanhola, refiro-me naturalmente à Guerra Civil. Mas essa tragédia não foi apenas peninsular nem única e verdadeiramente espanhola. Foi um conflito específico onde a Europa e o mundo já estavam implicados e que teria as suas consequências. Com o fim da segunda Guerra Mundial e sobretudo o fim do confronto entre leste e oeste, o nosso relacionamento peninsular com a Europa sofreu uma alteração radical. Não tivemos nisso, nós portugueses nem espanhóis, nenhum papel de actores, porque o sujeito dela foi a própria Europa.

Embora os traços das antigas querelas, ambições, medos e prevenções permaneçam, o actual relacionamento do povo europeu, dos povos europeus uns com os outros e neles, os nossos – de portugueses e espanhóis – essa problematização tradicional da nossa relação com a Europa, mesmo no que nela havia de onírico ou de absurdo recolheu ao museu da história. É aquilo que eu penso. Que mais não fosse porque a Europa, no seu conjunto, esta nova Europa próspera, continental, empenhada em inventar-se como uma espécie de Nação-Europa, – quando essa utopia perdeu o seu fascínio – recolheu ela própria ao museu da história ou antes mais, talvez, real e simbolicamente ela tornou-se no mais magnificente museu da história e é como museu da história que os outros, sobretudo os novos senhores da política mundial, nos visitam e nos utilizam. Enquanto Península e em termos políticos, nunca tivemos verdadeiramente grande contenciosos com a Europa, a não ser dessa Europa instalada em si mesma como um mito, até pela simples razão que um tal conflito, em última análise, era absurdo porque não há, se nós pensamos na história da Europa no seu conjunto, desde os tempos romanos até hoje, poucos espaços mais europeus, que os da Península, sendo mesmo uma espécie de Europa antes da própria Europa. Foi aqui que os conflitos da antiguidade se terminaram ou se jogaram. Foi aqui que César e Pompeu dirimiram as suas questões para o domínio do mundo antigo. Fomos integrados cedo nessa Europa, provavelmente um dos mistérios desse famoso afastamento é que nós fomos um pouco Europa, antes do que uma grande parte dessa Europa fosse Europa.

Nós podemos imaginar que uma parte dessa Europa, vista do nosso ponto de vista, em todo o caso, aqui no extremo ocidente, era uma espécie de barbárie definida com vários graus até chegar ao reino de Moscóvia. Como nós já tínhamos tido os Cartagineses, os Fenícios, os Gregos e depois os Romanos em nossa casa, nós fazemos parte dessa história. Não é a história da Europa como modernidade, da sua invenção com a modernidade, é uma outra história que está firme por trás, no horizonte, no passado dessa mesma história. Mas mesmo esse contencioso ficcional, com alguns motivos sérios subjacentes já não tem agora razão de ser, não porque a península se tenha diluído na Europa, mas com mais verdade porque a Europa, essa tal da modernidade, nos entrou em casa e se diluiu ela mesma na Península como Europa, a Europa que se propôs homogeneizar o resto da outra Europa. Esse contencioso e essa problematização não têm hoje razão de ser, em todo o caso não se podem pôr as relações com a Europa nos mesmos termos em que se punham há apenas 50 anos. Nós entrámos efectivamente para a casa comum, se é que alguma vez estivemos efectivamente longe dela como o supusemos, sobretudo a Espanha, foi sempre tão intensamente interligada ao destino da Europa e ao destino mais central da própria Europa.

O nosso caso é um pouco diferente porque nós, efectivamente, por vontade dos nossos dirigentes de outrora, por condições do destino, afastámo-nos dos primeiros dessa Europa. Simbolicamente isto permite uma outra possibilidade de reler tudo nos aconteceu desde então e sobretudo esse curioso processo de fascínio e de ressentimento em relação à famosa Europa, quando ela se constitui como Modernidade. Nós fugimos para outro sítio, ou por outra, nós derivámos, efectivamente, passámos a inventar uma outra Europa, uma outra maneira de ser Europa e essa outra maneira de ser Europa está viva. É a América, a América no seu conjunto, desde o norte até ao sul da Patagónia. Essa América não é o nosso passado, é, eu penso, neste momento, de uma maneira muito forte, o nosso futuro, no sentido mais empírico do termo. Agora estamos já normalizados e felizes, de algum modo, em termos europeus daqui. Mas a Europa não está normalizada nem feliz em termos de Europa aquela que não tem mais horizonte do que essa própria Europa. Mas nós inventámos, construímos – ou através de nós constituiu-se e inventou-se – uma outra Europa, e em última análise um Europa outra, a de um “novo mundo” que não está só no passado.

A famosa problematização do nosso destino que nos causava tantos problemas enquanto peninsulares que se viam como actores políticos de segunda grandeza, de segunda instância. Se nós pensamos que, particularmente a América Latina, é filha directa da Península nós não podemos ser problematizados a esse título. A esse título, já sem o sabermos, essa existência transatlântica fazia que não sentíssemos tanto as humilhações que tínhamos em relação à “outra” Europa. Estávamos construindo algo que nós nem sabíamos o que era, maior do que nós e isso não é o nosso passado, isso é o nosso presente e penso que será realmente o nosso futuro. O nosso futuro está naquilo que realmente inventámos, trazendo à Europa uma Europa que ela não conhecia.

 

Identidade e Cidadania, uma perspectiva

Por circunstâncias especiais não pudemos contar anteontem com a presença do Professor Fernando Savater no nosso dia consagrado aos problemas das relações da Península com a Europa. Temo-lo hoje connosco e eu começo por lhe agradecer a honra que ele nos dá com a sua visita, – penso que será a primeira à cidade da Guarda. É um prazer especial recebê-lo aqui e contar com a sua palavra para o leque de reflexões que nos entretiveram há dois dias acerca dos problemas da nossa Península e das suas relações com a Europa.

O Professor Fernando Savater é hoje uma das personalidades da cultura hispânica mais conhecidas, mais notáveis. É um filósofo, um cronista, um dramaturgo, um ficcionista, uma personalidade, como se diz vulgarmente, com muitas cordas no seu arco e, em todas elas, uma figura particularmente brilhante.

Há muitos anos, não há tantos anos como isso, Filosofia e Ibéria não rimavam muito, se não por excepção. Dizia-se que a Ibéria, e em particular Portugal, não tinham queda para a filosofia. Quer dizer, esta cultura que tinha dado Suárez e outras grandes figuras da história da filosofia no passado, não teria, na época moderna, pensadores à altura das exigências dessa mesma modernidade. No meu tempo, para quem fazia estudos de filosofia , a filosofia espanhola eram duas pessoas. Talvez só uma, que se chamava José Ortega y Gasset e depois, um pouco, Xavier Zubiri.

Eu creio que hoje o panorama, tanto em Espanha como em Portugal, se alterou profundamente. Os estudos filosóficos conhecem em Espanha uma grande expansão e ocupam, na cena cultural o primeiro plano que é aquele que, em princípio lhe deve estar destinado. O Professor Fernando Savater é um dos mais ilustres exemplos, digamos, da nova filosofia, se isso se pode dizer, da filosofia nova, da nova Espanha. O seu centro de interesses e aquilo que rapidamente o tornou notável são as reflexões sobre um dos capítulos mais difíceis da temática filosófica, aquilo que diz respeito à ética e as suas consequências, seus efeitos, as suas aplicações, a sua inserção no contexto da cultura e da sociedade.

Problemas éticos são dos problemas mais difíceis não só de tratar mas mesmo de justificar. Estávamos habituados, de algum modo, a que eles se solucionassem pela relação íntima que tinham tradicionalmente com a religião. De algum modo, a ética era – tirando evidentemente referências clássicas e sobretudo uma referência fundamental a Aristóteles – uma espécie de translado de efeito empírico de alguma coisa que as opções religiosas, o paradigma axiológico de fundo de ordem religiosa, de algum modo ajudavam a resolver ou impediam mesmo que se pusessem. O problema naturalmente tornou-se outro quando a modernidade se afasta ou se obscurece nela, uma referência de ordem transcendente e foi preciso justificar a ética numa ordem, digamos, puramente humana. Ora, justamente o filósofo Fernando Savater situa-se nessa linha, que podemos remontar ao pai dessa reflexão – o próprio Kant – o de uma justificação ética, num contexto e com umas finalidades puramente humanas.

É o que ele tem feito magistralmente. Por isso os seus livros têm conhecido tanto sucesso, sobretudo junto de novas gerações para quem a problemática ética é das mais obscuras e ao mesmo tempo absolutamente incontornável. Num mundo como o nosso, sem referências, sem referentes, propor uma reflexão dessa ordem é de facto uma audácia e uma contribuição para uma ordem nova, que não é apenas ordem no sentido político e ideológico do termo, mas a ordem mesmo da nossa cultura, da nossa civilização.

Felizmente nós temos algumas obras em português do Professor Fernando Savater, uma delas que é bem conhecida e que tem muito sucesso é “O meu dicionário filosófico”. O acento deve ser posto aqui no “meu” dicionário filosófico. É evidente que os dicionários são sempre de alguém mas a pretensão implícita de um dicionário é de não ser de ninguém. De maneira que assumi um dicionário filosófico introduzindo-lhe imediatamente essa nota: “isto é de minha responsabilidade, eu sou responsável por estas reflexões a propósito dos grandes conceitos da filosofia, esta é a minha opinião sobre esses assuntos”, é não somente um desafio, de marca voltairiana, mas já um acto ético.

E já nesta atitude nós temos aqui o homem, o grande herdeiro do pensamento do Século das Luzes, o grande conhecedor e amador de Voltaire e Diderot aquele que, por ser assim, de algum modo teve a coragem de se situar num domínio que não é aquele que habitualmente aparece como sendo mais típico da modernidade por um lado, mas sobretudo da pós modernidade, na qual se tornou um lugar comum pensar que o século das luzes em todos os termos nunca foi o Século das Luzes no sentido próprio, mas sobretudo que deixou de o ser. Não só não deixou de o ser mas provavelmente é um daqueles séculos aos quais seria bem necessário que a reflexão filosófica em geral e particularmente europeia voltasse, porque foi um século, o primeiro século em que a liberdade foi pensada, foi vivida e foi proposta como o fim mesmo da sociedade humana.

Fernando Savater é um homem livre e é um pensador da liberdade. Como pensador da liberdade procede com um distanciamento, um humor e uma ironia que são herdeiras desse grande século e lhe são instintivamente naturais. Ele tem muitos livros que eu admiro, mas há um que além de admirar invejo, e invejo que mais não fosse pelo título. Todos aqueles que de uma maneira ou de outra se colocam sobre a égide longínqua do velho Montaigne, gostariam de se ter lembrado de escrever algum dia um livro que se intitulasse o “Jardim das Dúvidas”. É um livro magnífico, uma ficção à moda do próprio século XVIII, a de um epistolário, de uma grande dama espanhola, muito ao corrente, na sua juventude, da cultura francesa, que em jovem teria cruzado realmente o olhar de Voltaire, sem que Voltaire a visse. E esse é o começo deste pseudo – epistolário filosófico, em que essa senhora pede a Voltaire que, em nome desse episódio da adolescência, consinta em escrever-lhe para lhe dizer quem é, contar-lhe aquilo que é. Esse é o pretexto para que Fernando Savater nos retrace um retrato acessível, cheio de humor, o de um conhecedor profundo do Século das Luzes, que pode abdicar de toda a erudição habitual de uma biografia clássica, para se dar ao luxo de nos fazer penetrar no mecanismo mesmo dos pensamentos de Voltaire e, colocado dentro dessa perspectiva imaginária, responder a uma dama espanhola.

E estamos em pleno centro da nossa própria preocupação, a do relacionamento da Península com a Europa, pois naquele momento a Europa significava não só, mas significava sobretudo, Voltaire. Portanto, é uma Espanha que de algum modo se lê no espelho de Voltaire e um Voltaire que percebe alguma coisa do Outro, no registo de uma europeia voltairiana mas espanhola. É um livro que eu recomendo, àqueles que não o conhecem, entre outros.

Não tivemos o prazer de o ter há dois dias, portanto vamos ouvi-lo como um “post-scriptum”, mas um post-scriptum um pouco à maneira das migalhas filosóficas de Kierkegaard, que é o livro mais importante que as migalhas. Sabemos que vamos ter com o Professor Fernando Savater o post-scriptum às nossas migalhas de há dois dias.

 

Ibéria e Europa

Começa hoje o que se pode considerar como o segundo pequeno passo para materializar da sugestão um pouco onírica, aventurosa, de criar na nossa capital de fronteira, que é a Guarda, um Centro de Estudos Ibéricos, contando naturalmente que pudesse receber, como recebeu, o patrocínio e a tutela cultural das duas grandes Universidades da Península: a Universidade de Salamanca e a Universidade de Coimbra.

Eu queria agradecer, antes de mais, aos ilustres professores de Espanha e de Portugal que aceitaram participar neste colóquio que se iniciará em breve. Antes de mais, ao senhor professor Claudio Guillén, ao Senhor Ministro Fernando Morán, lamentando que, por razões de ordem pessoal, o convite que foi endereçado ao antigo Embaixador de Espanha em Portugal, o Professor Raúl Morodo, não pudesse ter sido aceite, bem como, aos intervenientes da parte portuguesa, em particular ao nosso antigo Presidente da República, Dr. Mário Soares.

Queria agradecer igualmente ao Sr. Professor Valentín Cabero, que representa a Universidade de Salamanca, a prontidão e simpatia que desde o princípio manifestou em relação à criação do Centro de Estudos Ibéricos, julgando-o útil e de futuro, para um maior conhecimento e proximidade, não apenas retórica mas vivida entre os nossos dois países.

Agradeço igualmente ao Sr. Reitor da Universidade de Coimbra, uma vez mais, a gentileza e o apoio que nos trouxe e que nos traz sempre com a sua presença, representando aquela Universidade que é e foi durante séculos a única alma mater da cultura portuguesa. Igualmente é com grande prazer e grande honra que contamos, nesta sessão, com a representação do Instituto Cervantes, na pessoa do seu Director, Professor Jorge Urrutia, ensaísta e escritor. Apesar dos seus muitos afazeres, poude vir até nós e estar aqui presente. A sua intervenção mostrou até que ponto a questão das relações e da mútua presença, mesmo a mais desconhecida, das nossas duas culturas, lhe é familiar. Penso que no futuro teremos ocasião de contar de uma maneira ainda mais orgânica não só com o seu apoio, enquanto Director do Instituto Cervantes em Lisboa, mas com a sua própria colaboração, enquanto professor, ensaísta e grande estudioso das questões ibéricas. Igualmente agradeço à Dr.ª Amandina, Sub-Directora do Instituto Camões, o facto de nos trazer aqui o apoio implícito e explícito deste Instituto, na representação do seu Director, Professor Jorge Couto, que por razões pessoais não pôde estar connosco neste momento. Agradeço a disponibilidade que as suas palavras manifestaram de implicar ainda mais o Instituto nos futuros colóquios, seminários ou no funcionamento daquilo que o CEI se propõe fazer. E já agora desejava que o Professor Jorge Urrutia transmitisse ao Sr. Embaixador de Espanha os nossos agradecimentos pela carta que nos enviou. Quero que o Sr. Embaixador saiba que todos nós somos sensíveis a essa atenção com que o representante de Espanha acompanha esta tentativa de reforçar um pólo cultural, cuja finalidade não é outra do que contribuir para que este famoso desconhecimento ou conhecimento imperfeito dos nossos dois países em todos os domínios e particularmente no próprio domínio cultural, seja cada vez menor. Desejamos que o Centro hoje, e sobretudo no futuro, seja um lugar de convergência e de recriação de laços que sempre existiram e que existem, mas nem sempre pensados ou vistos com a força daquilo que eles representam.

O Centro de Estudos Ibéricos não começará a produzir esse efeito para o qual foi pensado enquanto não encontrar o seu público natural, o público a quem ele é primordialmente destinado, quer dizer, o meio académico, o dos estudantes, e não haja efectivamente entre o Centro, ainda em vias de se organizar, uma ligação mais ou menos orgânica, em todo o caso muito forte, entre ele e as actividades universitárias ou para-universitárias de que a nossa Beira é a sede. Refiro-me naturalmente ao Instituto Politécnico e à Universidade da Beira Interior. Só com o público destas duas instituições é que se poderá dar um conteúdo real ao programa deste repensamento dos laços mais ou menos frouxos entre Espanha e Portugal. Só quando houver uma tradição, por assim dizer, académica, além da mera área extra-universitária, é que de facto o Centro encontrará efectivamente a sua velocidade de cruzeiro. Ainda não é o caso, mas não podemos diferir muito para dar ao Centro aquela consistência, aquela coerência, aquela eficácia, que não terá se não levarmos a cabo essa espécie de entrosão entre o Politécnico por um lado e a Universidade da Beira por outro. O nosso público natural são os jovens, os estudantes. É para eles que nós temos de pensar que o afastamento lamentável ou o pouco conhecimento que os dois países têm um do outro, deverá ser colmatado e que, através deles, possamos viver de uma maneira diferente essa famosa relativa ausência, um pouco mítica, entre os nossos dois países e as duas culturas. Este é o meu primeiro grande voto por ocasião deste segundo colóquio, que tem o Centro de Estudos Ibéricos como actor.

Naturalmente eu quero agradecer, mais do que a ninguém, à Câmara da Guarda, na pessoa da sua Presidente Dr.ª Maria do Carmo Borges, o apoio sem o qual este Centro não teria podido sequer existir, e o empenho que tem manifestado até hoje para que ele realmente cumpra, pelo menos em parte, a pequena utopia em função da qual foi pensado. A todos desejo realmente que tenhamos em comum um dia mais ou menos fecundo de troca de ideias e de impressões acerca do tema que aqui nos reúne, que é o da Península, o da Ibéria, no seu relacionamento com a Europa.

Eduardo Lourenço, Novembro de 2001

 

Jogos de Fronteira, Jogos de Memória

Em termos americanos onde é a nossa fronteira? Em parte nenhuma, nem naquela que temos à vista e atravessamos a pé enxuto, como César o Rubicão. A verdadeira fronteira é simbólica, não natural, como essa mesma do célebre riacho italiano que separava a ordem de Roma, da desordem do capricho ditatorial. As fronteiras chamadas naturais pertencem mais à geografia que à história. Nelas não se joga o destino, individual ou colectivo, sob imperativo ético. Como dizia Hegel, uma montanha é só o que é. Não deixa passar ou só o consente através do esforço incomum. Só porque eles eram Aníbal e Napoleão, a travessia dos Alpes foi história e não mera geografia.

Uma fronteira é um paradoxo incarnado: “natural” deixa de significar, simbólica nem precisa de se materializar. A ordem humana é uma ordem de olhares e os seus conflitos dirimem-se, como num “western”, em campo árido para que a violência se exprima, se exorcize e, acaso, se redima. De quê? Da original realidade da violência que institui a cidade pondo à sua volta uma fronteira como fez Rómulo. É estranho pensar que o nascimento do paradigma da urbe é um “ghetto” voluntário. Só tenho casa minha, só tenho interioridade, inventando a exterioridade, o território do outro como inimigo do meu. Pelo menos é essa a escolha do sedentário. Uma escolha oposta à de Ulisses, o nómada, o que não tem casa ou a perdeu e erra para voltar a ela. As aventuras da interioridade, as do simples homem ou da humanidade terminaram há muito. Ninguém tem casa, ou tudo se passa como se a não tivesse. Como um deus de ficção, estamos em toda a parte e em nenhuma. É o refúgio que se tornou inconcebível. Ou só acessível aos raros que o podem mandar vigiar, como o velho Marlon Brando, na sua ilha de nómada insone. Já no berço é-nos concedido o dom da ubiquidade. Somos enfim aqueles deuses de que o texto sagrado se ri e agora se riem de todo o texto sagrado, mistério esvaziado junto do mistério em plena luz da Internet.

O que é fronteira no tempo da Internet? Todas as mensagens são conexas como rizomas, proliferação insensata num espaço virtual sem lugar para qualquer vivência que possa assimilar-se a uma fronteira e, muito menos, a um repouso. Estamos num rio-tempo que corre em todas as direcções até para a nascente. E é agora que nada nos prende e nada nos detém – mas também nada nos chama ou nos fascina como a antiga fronteira -que a sua falta nos interpela e nos inquieta. Que somos sem fronteiras? E que novas fronteiras podemos imaginar para ter de novo uma casa (a casa), uma cidade (a cidade), uma pátria (a pátria), sem perder a humanidade que com tanto custo construímos, abolindo fronteiras?

Só casas-tempo, vida como memória, que são as que não se definem por fronteiras naturais mas nos separam dos outros, não de maneira contingente e reversível como o espaço, mas as que se talham nesse rio-tempo onde o mundo corre e nós permanecemos numa paradoxal imobilidade. Cada um de nós é essa casa-tempo que por fora o leva ou é destinada a qualquer porto e, por dentro, está parada. Tudo o que conta é feito à nossa imagem, a cidade, o bairro, a nação, o vasto mundo. Nada são se não são memória viva, ir e vir dentro do nosso próprio barco para aquele porto onde nada nos espera senão carregamentos dos sonhos que nos sonham. Se não fosse assim, como suportaríamos o peso insuportável de fronteiras que nos tornam inacessível um mundo onde devíamos respirar como se estivéssemos no paraíso? A fronteira é o sinal de que fomos expulsos do paraíso, de todos os paraísos, salvo o da casa-tempo da memória, nossa e alheia, onde nos refugiamos para existir como os anjos que não somos. Mas é também o sinal de que, transpondo-a, estamos tentando recriar, por nossa conta e risco, o paraíso perdido.

Eduardo Lourenço Vence, 23 de Novembro de 2004

 

Camões e Cervantes

Em véspera da inauguração do Centro de Estudos Ibéricos sugeri que se fizesse uma sessão cultural que tivesse como objectivo pensar ou evocar, de algum modo, aquilo que são referências míticas da nossa cultura ibérica: Camões e Cervantes, tanto mais que este ano é aquele em que o mundo inteiro celebra o aparecimento dessa obra sem par chamada Dom Quixote.

De uma maneira muito sumária, vou tentar ligar um pouco essas duas referências culturais, provavelmente não tão bem como aqui o farão durante esta manhã, mas servindo-me, de algum modo, de uma referência intermediária, que não é outra senão a de Oliveira Martins. Foi, efectivamente, Oliveira Martins quem me sugeriu esta ideia de um Centro de Estudos Ibéricos, pois foi ele o primeiro a pensar na Península como um todo, não só na História, mas também na ordem ideológica, espiritual e cultural, em geral.

Na primeira tentativa que conhecemos de pensar em conjunto a civilização ibérica – a de Oliveira Martins –, não apenas na sua face propriamente histórica, quer dizer, na sua acção de expressão de uma vontade política com autonomia no meio dos outros povos, era natural esperar que, na caracterização do génio peninsular, encontrasse no paralelo entre Camões e Cervantes o seu objecto de peregrinação.

Próximos no tempo, tempo quase de pai primeiro e de filho segundo, soldados e poetas de um Portugal e de uma Espanha no auge da sua afirmação, no tabular do mundo, esse paralelo devia iluminar, como nenhum outro, o mistério do génio peninsular de que ambos se tornaram, até hoje, a expressão mítica.

Pode pensar-se, apenas por razões de patriotismo, que Oliveira Martins conferisse a Camões, nessa matéria, um estatuto emblemático raro, em todo o caso diferente do que concede a Cervantes. Não se trata, na sua perspectiva, de qualquer valoração de ordem literária, que seria absurdo, mas, unicamente, da diversa relação do minhoto, como ele entende o génio peninsular. Sem hesitação, Oliveira Martins rotula Os Lusíadas de testamento da Espanha, a Portugal coube, uma vez, a honra de ser o intérprete da civilização peninsular perante o mundo. Esse livro, brasão da história de toda a Espanha e átomo redondo da nossa existência nacional é o poema de Camões: Os Lusíadas.

Da visão de Oliveira Martins sobre a acção humana, histórica ou privada, faz parte a ideia de que a vida em si mesma, na sua forma mais alta, é heroísmo em acto, o que quer dizer epopeia vivida. É o seu ideal heróico voluntarista, pois pouca gente tem tido, entre nós, a consciência de que a outra face do heroísmo é uma espécie de inversão dele, uma espécie de sentimento de que esse próprio heroísmo confina com a celebridade do fracasso, ou ele mesmo pode não ter justificação realmente em si.

Porque é que Oliveira Martins consagra um capítulo da sua História da Civilização Ibérica a Camões? Por razões de ordem patriótica, naturalmente, mas também pela sua própria visão do mundo como fundamentalmente epopeica, mesmo se é uma epopeia condenada ao fracasso, de que os próprios Lusíadas seriam exemplo. No caso da relação de Os Lusíadas com a nossa acção no mundo, Oliveira Martins considera o Poema como uma espécie de epitáfio da Nação, ou mesmo a Bíblia da Nação. Era natural esperar que se encontrasse outra forma de heroísmo, um outro género, que sugerisse a Oliveira Martins consagrar a Cervantes um capítulo, não tão importante como consagra a Camões, mas, provavelmente, ainda maior. Ignoro porque é que Oliveira Martins, na sua visão sintética e, ao mesmo tempo, histórica e mítica do nosso passado peninsular, não reservou a Cervantes a atenção singular que consagrou a Inácio de Loyola e a Camões. Claro que ele não ignora Cervantes!

Numa breve passagem da História da Península Ibérica aproxima Cervantes de um istmo activo do Dom Quixote, tão heróico como ele na vida, mas já firme de uma expressão de uma Espanha exausta de feitos épicos.

Quando Filipe II era o monarca mais importante do seu tempo, na Europa e, consequentemente, no mundo, segundo a nossa visão europeio-centrista, mas rei de uma Espanha que seria mais consciente do que Portugal, que era, ao mesmo tempo, muito e nada, como os próprios Lusíadas o demonstram.

Esta imagem de Cervantes tornou-se, por assim dizer, Clássica. O seu livro, como “Bíblia do Desengano”, tem suscitado comentários sem fim. Na visão de Oliveira Martins, intrinsecamente dramática – não apenas como leitura de civilização de culturas ibéricas, mas como visão geral do mundo –, e, ao mesmo tempo, pessimista e estóica um herói do desengano, como Cervantes, devia encontrar uma compreensão e até uma adesão íntima maior do que qualquer outro autor. Afinal, e antecipando um desengano mais profundo do que no séc. XVII ibérico, Cervantes poderia ser reclamado como patrono. Oliveira Martins tinha mais motivo do que ninguém para compreender o desengano positivo do mundo Barroco que Cervantes exemplifica, exorciza e transfigura, visto que essa atitude de Dom Quixote tem a virtude de elevar o desengano particular de uma época virtualmente épica e, ainda, a componente essencial do destino humano.

Cervantes aparece na História da Civilização Ibérica no limiar daquilo que, durante três séculos, nós chamámos a decadência da Espanha e, mais latamente, da nossa Península. O livro imortal de Cervantes só com um Romantismo acederá a um estatuto mítico de uma ilustração, de uma eterna luta entre o espírito e o real, que é, para Oliveira Martins, o eco sublimado da decadência histórica da Espanha. Mas, ao contrário de Antero, essa decadência é menos um fruto das célebres três causas descobertas na Inquisição pelos Jesuítas do que o preço do seu histórico Quixotismo de que o literário, com o seu desengano, será apenas o melancólico reflexo. Escreve ele: «a Espanha de Filipe é a mesma de Jimenes, o Portugal de D. João III é o mesmo de D. João II». Não há sentimento nem ambições diversas, há apenas a sombra da velhice, o cansaço, depois da grande obra. Toda a energia vencida se perverte e, assim, a Espanha, além de sofrer as consequências gerais desorganizadoras provocadas pelas descobertas, sofria, particularmente, da perversão do espírito que nobre e entusiasticamente avassalara a Europa.

Indicando com mais precisão o lugar de Dom Quixote nesta poética de uma decadência heróica, escreve: «a Espanha vê no título de Dom Quixote a condenação dos antigos cavaleiros e aplaude essa sátira que noutro alcance seria apenas um brinquedo erudito». Bem longe se escondiam, já no passado, as figuras dos “Amadis”. A cavalaria que Cervantes condena – escreve Oliveira Martins – não é, porém, só essa, é também a divina, o que ele acusa é a teimosia louca num heroísmo já sem significação nem alcance. Cervantes, em pessoa, fora mordido por esse vírus e, agora, velho e desenganado, o antigo humorismo dos graciosos da comédia castelhana encarna dentro dele produzindo uma obra genial, embrulhado na capa esburacada, através da qual viu o sol a rir-se para ele.

O dualismo do drama espanhol aparece vivo na biografia do escritor que, no final, conclui, condenando em massa a nação cuja vida se reproduzia na sua. Esqueçamos esta condenação que não existe no Dom Quixote, pelo menos na minha leitura. Retenhamos apenas a dupla face de um livro de inicial tentação satírica, pouco a pouco submersa por uma compreensão de fundura incomparável da alma humana que insufla nas proezas caricatas e sublimes da banda desenhada divina da nossa condição humana, todo o peso daquela bondade que o seu contemporâneo Shakespeare comparava ao leite da vida.

Não há no Quixote o desdenhoso sorrir que Oliveira Martins aí vê, mesmo associado a ironia penugenta, que mais certeiramente lhe associa. A poética do Dom Quixote revela daquela ironia transcendente que o autor da História de Portugal revê no seu amigo Antero e, talvez com mais propriedade, de um humor transcendente que é uma novidade no olhar europeu, um riso ou um sorriso que sublinha a nossa impotência diante do ideal, mas vive dele e o aproxima da nossa conatural e intrínseca fragilidade humana. Milagre sem repetição na nossa Península! Só nas páginas de Dixon, Dostoievsky ou de Tchecov conhecerá, um dia, uma versão comparada.

Como em todas as obras de génio, esse humor transcendente que, no Dom Quixote, tanta originalidade encarna, não é a expressão de uma virtualidade universal e abstracta da nossa condição, mas filha de um tempo. Tempo como história e tempo como cultura. Aquele que vive na Península como crepúsculo de um Renascimento que, só por excepção, conhecemos. Camões é, realmente, a excepção das excepções. A expressão da sua palinodia sob a forma maneirista, antes de se tornar visão do mundo na Idade Barroca.

Cervantes está entre tempos: o da idade critica e irónica de Erasmo, que nos aflorou mas não nos penetrou, mesmo sob a forma hiperbólica de uma loucura onde toda a crítica do mundo e, antes de mais, da sua religiosidade tradicional era possível que o mundo de Quevedo já fosse o do desengano tolerante e melancólico do Dom Quixote, e o amargo desapiedado e ressentido do Buscón, ou da total desilusão do Criticón que, em nome de uma fé quase mágica, converte o mundo numa fantasmagoria carnavalesca digna de Jerónimo Bosh ou de Gil Vicente. Já não sendo tão medieval como o dele, o mundo Cervantes é o mundo em que o riso e a graça não vivem da sombra da maldade. Mais tarde, Baudelaire dirá o espírito do mal que na Modernidade constituirá o seu ressort permanente. Também não é o da bondade de Rousseau onde não há lugar para ela, pela nossa condição, ser virtualmente paradisíaca. No mundo de Cervantes, nem Deus está morto nem o Diabo conduz o mundo, mas também não é o de Gil Vicente em que, graças aos Céus, o Diabo é o cómico por excelência e o terror que inspira e está ao serviço divino, como estratégia de Deus.

O mundo de Cervantes é contra todos os sentidos, um mundo em estado de graça, não apenas para nos fazer rir ou sorrir fora da magnanimidade real ou virtual do sarcasmo, forte tradição peninsular, mas também de uma ironia que nunca foi muito a nossa especialidade. A famosa e pertinente inscrição de Cervantes num espaço de liberdade de pensar e criticar é fruto da ironia do autor da luxúria e da loucura, Erasmo, e também do ambiente erasmista que a própria Península há muito vivera, à sua maneira, mas que se tornara o baluarte cultural e politico contra a Europa, cada vez mais protestante. Qualquer versão da loucura era erasmista e da sua função subversiva dos valores culturais de tradição medieval era não só perigosa, como impensável.

A crítica do estado do mundo, a começar pelo mais próximo, só pode ser feita de dentro, pondo a sociedade e os homens na cruz da sua contradição cristã ou latamente evangélica. Não à maneira de Alfonso de Valdês, fiel de um Gil Vicente sem mor, mas à sua combatente de Deus em Lepanto, glorificando o Cecílio, chocando-se na sua vida de todos os dias contra uma sociedade, onde o abismo entre os ideais de justiça e de caridade pleonasticamente evangélicas era tão grande como o que separava os heróis da ficção cavaleiresca do comum dos mortais.

Se alguma vez tinha existido o mundo encantado do Amadis, dos Cavaleiros da Tábula Redonda, das aventuras assumidamente delirantes das novelas de cavalaria, nos novos tempos, na impiedosa luta pelos bens do mundo desesperada pela conquista da América e pelo triunfo da idade burguesa, deixara de ser no mundo exemplar na ordem ficção para se tornar no mundo de evasão e, mais gravemente, de mentira.

Realista, lírica ou onírica, toda a dita época é virtualmente alegórica, nela se inscrevendo o sentido da vida humana como destino transcendente, pelo menos na Península. A humanidade não goza ainda de qualquer dignidade e, quando isso acontecer, a sua dignidade aliterária advém-lhe de uma denegação ou indiferença a essa finalidade transcendente.

No tempo de Cervantes, toda a literatura séria releva o sublime, como “Os Lusíadas”, com a sua galateia. Todas as obras estão escritas ou visam escrever-se numa espécie de empírico literário. E talvez o género específico e a proeza literária que o Dom Quixote representa não seja mais que uma invenção sem precedentes de ter feito baixar o sublime do céu à terra. A famosa invenção do romance como realidade moderna não consiste senão nessa transubstanciação às avessas sob a máscara da paródia na aparência que já tinha servido Aristóteles para sair da Idade Média positivamente ou magicamente continuando no Jardim da Armida. Cervantes aprenderá a lição e guardará a forma, invertendo o conteúdo, revestindo e revestindo-se do seu herói do mundo, da loucura e inventando para tornar nossa a sua mais original criatura: Sancho, o primeiro e o mais genial dos heróis sem qualidade nenhuma, o mais universal pela sua ignorância não douta, uma universalidade que é da sabedoria humana mais próxima da inocência que podemos conceber.

Despida da sua máscara sibilina, a loucura quixotesca é a condição transcendental da sabedoria, do sonho que propícia uma vivência e um entendimento do mundo e de nós mesmos ao rés da vida, mas de uma vida elevada acima de si mesma pelo combate heroicamente travado e perdido de Dom Quixote. Qualquer que seja a ideia que se faça da intenção ou das intenções de Cervantes ao escrever o Dom Quixote, a sua intrínseca ambiguidade é inseparável dela, como elmo de Mambrim, e terá sempre a dupla leitura da sua aparência e da sua enigmática proliferante e irredutível realidade. É certamente o primeiro livro que se pode chamar “work in progress” ou livro “in fieri”. Assistimos à sua génese e evolução, tanto na sua composição rapsódica e recompiladora da primeira parte, como na coerência e afirmação dos personagens. Nada há de mais elucidativo no Dom Quixote que o baptismo dos personagens imortais, a hesitação em nomeá-los com precisão, como se isso se tornasse contraditório, com frios de morte.

O livro por excelência deixara de ter leitura humana ou estava fechado. A literatura não é o espelho da verdade se não for o lugar onde ela vacila. Todo o programa da literatura futura está, por assim dizer, inscrito no Dom Quixote. Primeiro que ninguém, Cervantes conheceu esta vertigem num género mouro. Ele tinha escrito um livro onde pusera já não só o seu género, mas toda a sua vida. Um livro cuja profunda seriedade escapava aos que riam com ele e asseguravam o sucesso inaudito. Esse livro destinado a encantar os séculos futuros era grosseiramente imitado e troçado. A sua vida, o seu sangue, a alma da sua alma, eram apenas papel escrito. A este desafio sem precedentes devemos a segunda parte do Dom Quixote, que não é apenas uma tradicional continuação das aventuras do ilustre fidalgo, como as que eram correntes na grande voga da segunda fase da ditadura de cavalaria, mas que é verdadeiramente o terceiro Quixote, aquele que nunca teria existido sem a misteriosa e eficaz impostura de Avelanede (confesso que no meu panteão privado guardo sempre uma vela acesa em honra do famoso impostor). Sem ele não teríamos a segunda parte do Dom Quixote. A invenção do livro que não vive de paródia, ou da crítica à ficção como mentira do mundo, mas da ficção como essência do livro, de todos os livros e através dele da nossa incontornável e interminável ficção.

 

CEI – Dez Anos

É de crer que a sugestão de criar, numa antiga cidade de fronteira, de velhos pergaminhos, um Centro de Estudos Ibéricos, caiu, em todos os sentidos, na boa terra. Talvez apenas porque as circunstâncias lhe eram propícias. Mas, sobretudo, porque encontrou eco nos responsáveis políticos e culturais que lhe podiam dar vida. Antes de mais, a então Presidente da Câmara, Doutora Maria do Carmo Borges, que a acolheu favoravelmente e o então Presidente da República, Doutor Jorge Sampaio, que logo a apadrinhou. Assim nasceu o Centro de Estudos Ibéricos, propósito e desafio, na aparência insólito, de estabelecer um elo de tipo novo, num tempo novo, o de uma Europa em redefinição do estatuto milenário, entre os dois países independentes e vizinhos, Portugal e Espanha.

Dez anos passaram e o que era apenas uma sugestão e um pequeno sonho de alterar profundamente as nossas mútuas relações de conhecimento (e desconhecimento), começa a receber um princípio de existência. E um pouco mais do que isso. Primeiro, pelo empenhamento nesta iniciativa Trans-ibérica a partir de uma pequena cidade, guardiã secular de fronteiras, e do que nela separa, das duas Universidades que, também, nos mesmos séculos, foram lugar do mais alto ensino e do reconhecimento da Cultura que nos é comum: Coimbra e Salamanca. O Centro não podia existir senão apoiado nos mestres, estudiosos e estudantes desses imemoriais Estudos peninsulares. Historiadores, geógrafos, sociólogos, humanistas, das duas velhas Universidades deram vida e têm animado o jovem Centro de Estudos Ibéricos. Graças a eles, o Centro, junto com as outras instituições de interesse cultural da nossa cidade, tem contribuído para dar à Guarda um papel de mediadora entre as nossas duas culturas peninsulares, tão próximas nas suas raízes, mas distantes no seu convívio histórico concreto. E não era outro o projecto deste Centro, que o de conhecer a sério o que também, com dano mútuo, desconhecíamos.

Nada do que nestes breves anos foi levado a cabo teria sido possível sem o empenho dos responsáveis institucionais e culturais do Centro, tutelado pela Câmara da nossa Cidade. Com rara devoção, os Doutores Virgílio Bento e Doutora Alexandra Isidro têm, durante estes poucos anos de vida do Centro, os decisivos, contribuído para que uma simples sugestão se convertesse em vida partilhada.

Eduardo Lourenço Vence, 5 de Novembro de 2010

 

As Relações Ibéricas no Contexto da Nova Europa

Começa, hoje, o que se pode considerar como o segundo pequeno passo para materializar a sugestão um pouco onírica, aventurosa, de criar na nossa capital de fronteira, que é a Guarda, um Centro de Estudos Ibéricos, contando naturalmente que pudesse receber, como recebeu, o patrocínio e a tutela cultural das duas grandes Universidades da Península: a Universidade de Salamanca e a Universidade de Coimbra.

Eu queria agradecer, antes de mais, aos ilustres professores de Espanha e de Portugal que aceitaram participar neste colóquio. Antes de mais, ao Senhor Professor Claudio Guillén, ao Senhor Ministro Fernando Morán, lamentando que, por razões de ordem pessoal, o convite que foi endereçado ao antigo Embaixador de Espanha em Portugal, o Professor Raúl Morodo, não pudesse ter sido aceite, bem como, aos intervenientes da parte portuguesa, em particular, ao nosso antigo Presidente da República, Dr. Mário Soares.

Queria agradecer igualmente ao Sr. Professor Valentín Cabero, que representa a Universidade de Salamanca, a prontidão e simpatia que desde o princípio manifestou em relação à criação do Centro de Estudos Ibéricos, julgando-o útil e de futuro, para um maior conhecimento e proximidade, não apenas retórica mas vivida, entre os nossos dois Países.

Agradeço, igualmente, ao Senhor Reitor da Universidade de Coimbra, uma vez mais, a gentileza e o apoio que nos trouxe e que nos traz sempre com a sua presença, representando aquela Universidade que é e foi durante séculos a única alma mater da cultura portuguesa. Igualmente, é com grande prazer e grande honra que contamos, nesta sessão, com a representação do Instituto Cervantes, na pessoa do seu Director, Professor Jorge Urrutia, ensaísta e escritor. Apesar dos seus muitos afazeres, pôde vir até nós e estar aqui presente. A sua intervenção mostrou até que ponto a questão das relações e da mútua presença, mesmo a mais desconhecida, das nossas duas culturas, lhe é familiar. Penso que, no futuro, teremos ocasião de contar de uma maneira ainda mais orgânica não só com o seu apoio, enquanto Director do Instituto Cervantes em Lisboa, mas com a sua própria colaboração, enquanto professor, ensaísta e grande estudioso das questões ibéricas. Igualmente, agradeço à Dr.ª Amandina, Sub-Directora do Instituto Camões, o facto de nos trazer aqui o apoio implícito e explícito deste Instituto, na representação do seu Director, Professor Jorge Couto, que, por razões pessoais, não pôde estar connosco neste momento.

Agradeço a disponibilidade que as suas palavras manifestaram de implicar ainda mais o Instituto nos futuros colóquios, seminários ou no funcionamento daquilo que o CEI se propõe fazer. E, já agora, desejava que o Professor Jorge Urrutia transmitisse ao Sr. Embaixador de Espanha os nossos agradecimentos pela carta que nos enviou. Quero que o Sr. Embaixador saiba que todos nós somos sensíveis a A Ibéria no contexto europeu 50 essa atenção com que o representante de Espanha acompanha esta tentativa de reforçar um pólo cultural, cuja finalidade não é outra do que contribuir para que este famoso desconhecimento ou conhecimento imperfeito dos nossos dois países em todos os domínios e particularmente no próprio domínio cultural, seja cada vez menor. Desejamos que o Centro hoje, e sobretudo no futuro, seja um lugar de convergência e de recriação de laços que sempre existiram e que existem, mas nem sempre pensados ou vistos com a força daquilo que eles representam.

O Centro de Estudos Ibéricos não começará a produzir esse efeito para o qual foi pensado enquanto não encontrar o seu público natural, o público a quem ele é primordialmente destinado, quer dizer, o meio académico, o meio dos estudantes, e não haja efectivamente entre o Centro, ainda em vias de se organizar, uma ligação mais ou menos orgânica, em todo o caso muito forte, entre o Centro e as actividades universitárias ou para-universitárias de que a nossa Beira é a sede. Refiro-me, naturalmente, ao Instituto Politécnico e à Universidade da Beira Interior. Só com o público destas duas instituições é que se poderá dar um conteúdo real ao programa deste repensamento dos laços, mais ou menos frouxos, entre Espanha e Portugal. Só quando houver uma tradição, por assim dizer, académica, além da mera área extrauniversitária, é que de facto o Centro encontrará efectivamente a sua velocidade de cruzeiro. Ainda não é o caso, mas não podemos diferir muito para dar ao Centro aquela consistência, aquela coerência, aquela eficácia, que não terá se não levarmos a cabo essa espécie de entrosão entre o Politécnico por um lado e a Universidade da Beira por outro.

O nosso público natural são os jovens, os estudantes. É para eles que nós temos de pensar que o afastamento lamentável ou o pouco conhecimento que os dois Países têm um do outro, deverá ser colmatado e que, através deles, possamos viver de uma maneira diferente essa famosa relativa ausência, um pouco mítica, entre os nossos dois Países e as duas culturas. Este é o meu primeiro grande voto por ocasião deste segundo colóquio, que tem o Centro de Estudos Ibéricos como actor.

Naturalmente, eu quero agradecer, mais do que a ninguém, à Câmara da Guarda, na pessoa da sua Presidente Dr.ª Maria do Carmo Borges, o apoio sem o qual este Centro não teria podido sequer existir, e o empenho que tem manifestado, até hoje, para que ele realmente cumpra, pelo menos em parte, a pequena utopia em função da qual foi pensado. A todos desejo realmente que tenhamos em comum um dia mais ou menos fecundo de troca de ideias e de impressões acerca do tema que aqui nos reúne, que é o da Península, o da Ibéria, no seu relacionamento com a Europa.

 

Inauguração da sede do CEI

Estou aqui apenas como a pessoa que, por ocasião das Comemorações do Oitavo Centenário da nossa Cidade, teve a ideia, talvez um pouco onírica, de imaginar que, aqui, nesta cidade tão bem colocada, como uma espécie de centro estratégico entre Portugal e Espanha, se poderia imaginar um centro onde se reflectisse sobre as relações ou não relações dos povos da Península. Na verdade, esta ideia teria morrido no momento mesmo em que a iniciei, se não estivesse na assistência o Sr. Presidente da República, a quem a ideia agradou. Já se sabe que só o poder tem força mágica para levar uma simples ideia a um começo da realidade! Estava também presente, a cara Presidente da Câmara, Dr.ª Maria do Carmo Borges, que “tomou a peito” o projecto e com os seus colaboradores deu corpo a esta ideia. É sobretudo a eles que se deve a passagem de uma simples ideia à realidade, que já é, e que vai ser concretizada com a inauguração da sede do Centro de Estudos Ibéricos – no princípio pensado como uma espécie de instituição com ambições mais vastas, mas que, provavelmente, não poderiam alcançar-se numa cidade como a nossa. Este projecto começou a ter possibilidade de existência com a ideia de que a Guarda não estaria sozinha, mas seria sim o lugar de articulação, na ordem cultural, entre os dois grandes povos clássicos da cultura da nossa Ibéria, que são Coimbra e Salamanca.

É uma honra que uma ideia tão simples se possa concretizar, porque, de facto, Coimbra de um lado e Salamanca do outro permitem, com a sua participação, dar um começo de vida e existência a essa ideia peregrina, mas muito enraizada em mim.

Em criança entretive-me, como Charlie Chaplin num célebre filme, a caminhar de um e outro lado da real e imaginária linha que separa o pequeno reino lusitano da imensa Espanha apenas adivinhada. Foi a minha primeira vivência da fronteira! No fundo, não desejaria aboli-la. As fronteiras definem-nos…Talvez este jogo inocente tenha inspirado, inconscientemente, a sugestão de onde veio a ideia de um centro ou de uma instituição que abolisse, na ordem do imaginário, que é a da cultura, não tanto esses estóicos litígios que, durante séculos, separaram, na ordem politica, os dois povos da ibéria e que são, de algum modo, a condição da identidade de ambos, mas o menos aceitável desconhecimento ou insuficiente conhecimento que portugueses e espanhóis tiveram uns dos outros, sendo, como Oliveira Martins mostrou, dois ramos da mesma árvore ibérica. Mais se tornaram quando, tendo saído ambos das ocidentais praias de Lisboa e de Sevilha, ilustraram essa dualidade gémea do Oriente ao Peru. Esse é, há cinco séculos, o autêntico espaço da famosa civilização ibérica, de conquistadores conquistados e transfigurados por essa saída pelo mundo, tão ou mais aventurosa que a de D. Quixote.

Abolir as fronteiras ou torná-las de símbolo de separação em sentido de mútua imolação, foi a ideia que presidiu à criação do Centro que, hoje, será oficialmente inaugurado.

O essencial do projecto, modesto nos meios, mas ambicioso nos fins é, em última análise, o de pensar em comum a hora de uma Península que é, hoje, muito diferente do que já foi. Uma Península que reocupou o seu lugar na Europa, numa versão diversa da que foi a nossa no Século de Ouro, e que se encontra confrontada em conjunto com desafios de dimensão planetária de um género novo.

Celebra-se, este ano, o quarto centenário de um livro que é, não só o espelho e a honra de Espanha, mas o espelho de uma universalidade e humanidade incomparáveis. Nele se consignou, com alguma melancolia, a morte de um sonho que foi comum a Portugal e a Espanha durante séculos e cujo ecos não se extinguiram. Esse sonho prosseguia do que se chamou o espírito de cruzada que da Idade Média nos vinha. Nesse sentido, D. Quixote era já o seu requiem e nós, os vivos, celebramos os requiam para que os mortos ressuscitem e não para consagrar essa morte. No sentido Clássico, esse cruzeirismo não pertence ao espírito do nosso tempo, mas não é razão para que morramos de melancolia como o herói sublime.

A cruzada ibérica é, hoje, outra. Não é a do sentido camoniano da fé e do império, nem é essa cruzada dos céus da ficção imortalizada por Cervantes, mas é aquela que impõe o estado de uma sociedade de poder e conhecimento em luta pelo domínio da Natureza, mas mais ainda em luta pelo Mundo, que saiu do domínio da Natureza por nós inaugurado pela era cartesiana, pelo racionalismo moderno, que afastou, pouco a pouco, o homem da relação idílica que mantinha com a Natureza. Estamos no século da robótica, no século da virtualidade, no século em que a nossa meditação sobre o nosso lugar no mundo mudou de instrumentos e de dimensão. Temos que acompanhar a luta do espírito moderno, que tanto nos custou, a nós peninsulares, dar-lhe uma continuação, que outros povos na Europa estavam dando, depois de nós termos sido aqueles que levámos essa Europa ao resto do Mundo. Agora, somos convidados a escolher um mundo, mas sem saber se a nossa acção e a nossa capacidade de domínio desse Mundo é uma prática que nos salva ou nos condena.

Fui eu que sugeri a criação deste Centro e, agora, deixo mais uma outra sugestão para materializar, ainda mais, a função de elo, entre Portugal e Espanha, que o Centro de Estudos Ibéricos se pudesse, um dia, chamar Oliveira Martins e Unamuno e, assim, ficariam ligados dois grandes vultos da cultura ibérica. Oliveira Martins, porque chamou a atenção para a pouca força com que tematizámos a nossa vida, estruturalmente épica, e Unamuno, porque foi um dos grandes agitadores do espírito ibérico.

 

O Duplo rosto da fronteira

O Prémio que este ano o Centro de Estudos Ibéricos, através do seu júri luso-espanhol, atribui ao homem da fronteira e jornalista de televisão, Agustín Remesal, tem um significado muito particular. É o primeiro que é concedido a um homem dos “media” e, ao mesmo tempo, a um intelectual que, ao longo do seu percurso, se tem interrogado de uma maneira apaixonada acerca da vivência singular de um dos espaços “raia” da nossa Península, o que, desde há séculos, separa Portugal de Castela e, mais latamente, Portugal de Espanha.

A História da nossa Península não é propriamente a história de Penélope, uma espécie de tela misteriosa em perpétua urdidura histórica.

Na Europa, “a raia quebrada” a que Agustín Remesal consagrou um excelente e inédito documentário, é um autêntico paradoxo. Ela não é propriamente os Pirinéus ou o Reno, ou o Elba ou o Vistúla, realidades separadoras e obstáculos de densidade palpável, historicamente quase intransponíveis em termos guerreiros.

Fisicamente – geograficamente – nada, nada de diferente separa Portugal da fronteiriça Espanha. É a mesma meseta que nos continua, a mesma planura da Extremadura e com mais força simbólica, os mesmos rios que, como se soubessem onde está o mar deles, recortam o nosso País e se perdem no Oceano. Geograficamente, somos um todo. É a História multi-centenária que nos divide. E essa História é a de uma separação política cultivada e mantida, não sem dificuldade, durante séculos, com as suas peripécias conhecidas e cuja compreensão deve mais às comoções intermitentes da política europeia do que às rivalidades e relações de força do nosso destino comum intra Peninsular.

Há um drama peninsular e nós fazemos parte dele. Mas quando comparamos o nosso destino ao de outros espaços conflituosos da Europa, ao fim e ao cabo, os nossos dramas – e em particular, o de Portugal – têm um lado lírico que outros nos podem invejar. A periferia tem-nos preservado da grande “tragédia europeia”. Uma precoce partida para o largo de toda a tragédia digna desse nome.

Pode pensar-se que esta fuga para o outro lado do Atlântico, onde repetimos a cisão peninsular – relativizou, afinal, a dramaticidade da nossa famosa “fronteira”. Como se entre Portugal e Espanha, de Toro mais do que de Aljubarrota – tivéssemos decidido, não ver, não ter em conta «a nossa “raia quebrada”». Nós sabemos que está lá – aqui mesmo ao lado – como se não estivesse. Tradições culturais de milénios, religiosas, falas tão próximas, deviam tornar, por assim dizer, invisíveis as nossas mútuas fronteiras – e penso que, simbolicamente, e não apenas como bem vindos turistas, os nossos amigos espanhóis assim a atravessam. Paradoxalmente, fizemos da “semelhança” e do mimetismo, para lembrar René Gérard, a mais sólida das fronteiras, feita de quase nada, apenas da vivência secular de uma diferença local que o estatuto de Nação, na Europa e fora dela, universalizou com o nome de Portugal.

Tudo isto podia ser apenas coisa do passado, já sem importância, no momento em que a Europa se desenha como espaço comum – ou assim se sonha – e em que por definição a problemática da fronteira ou os seus problemas – deixam de ser preocupação politica ou militar, como durante séculos. Somos um continente em paz. Isto parece um dado adquirido. Mas que paz? A antiga paixão que a fronteira assinalava como signo de confronto mortal está, sem dúvida, adormecida. É uma boa ocasião para pensar o que é uma fronteira, e não apenas imaginar que desapareceu, magicamente. Mesmo um pequeno país, como a Bélgica, a fronteira pode ser ainda a rua vizinha da Flandres. A nossa, assumida há muito como algo natural, não nos interpela ou nos preocupa como drama virtual.

Temos, agora, todo o tempo para revisitar a fronteira que fomos e ainda somos, anexando como algo familiar e positivo, como faz o nosso premiado Agustín Remesal. Temos sobretudo, tempo para pensar e viver a fronteira como algo positivo. Não apenas o que separa ou ameaça. Mas como algo que nos põe limites que são de espaço e de memória. E que, por isso, paradoxalmente, nos define. E bem pensada é já um diálogo em si mesma. Devemos estar gratos a Agustín Remesal por ter ilustrado, tão concretamente, com a sua paixão pela raia que nos separa e une, a virtude nova em folha deste diálogo de fronteiras em terras da Europa que bem precisa dele.

Vence, 21 de Junho de 2006 Eduardo Lourenço

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