“Corpo e membros uma só cousa”: os mesteirais e o povo da Guarda nas Cortes medievais

Porta d' El Rei-Guarda - Foto António Prata Coelho

  • Antonieta Pinto [AP]
  • António Prata Coelho [APC]

 Durante o século XIII, a cidade da Guarda foi-se afirmando através de dois fatores essenciais – a existência de um mercado e a sua promoção a sede de bispado.[1] A malha urbana estabelecia-se então num emaranhado de ruas, bairros e praças, circunscritas por muralhas. Os homens viviam e conviviam nesse espaço; entre eles se estabeleciam relações de poder, que se ajustaram ao longo do tempo e mediante as circunstâncias. “A comunidade urbana medieval caracteriza-se não só pela concentração dos homens no espaço amuralhado e pela dimensão demográfica […] mas também pelas atividades dos citadinos “[2] É acerca destas atividades, particularmente as artesanais, e sobre quem as praticava que este estudo pretende debruçar-se. Se a cidade conhecia então uma concentração de atividade artesanal, interessou-nos procurar menção aos artesãos e profissionais urbanos em textos medievais.

A fonte que serve de ponto de partida para este estudo são os capítulos especiais de Cortes apresentados pela Guarda, entre 1325 e 1490, período entre os reinados de D. Afonso IV e D. João II.[3] Através destes textos pretendemos conhecer melhor a vida da cidade no período considerado, e inquirir qual a relevância do grupo dos artesãos na dinâmica do poder local.

Quais as queixas apresentadas pelos da Guarda em Cortes? Quais as necessidades e desejos da população do concelho? Que relevância tinham os grupos sociais e/ou profissionais da cidade na representação da Guarda em Cortes? Que argumentação se utilizava para fazer valer os interesses concelhios? Qual a resposta que o rei dava às petições do concelho? A par destas questões, outras mais fundamentais nos surgiram, decorrentes das primeiras – quem representava o concelho em Cortes? Quais eram os grupos de poder na cidade? Quais os interesses em confronto? Segundo estes textos, o que era, afinal, importante para o governo da cidade?

As Cortes – “areópago do povo”

As Cortes foram na Idade Média uma “assembleia complexa nas funções e constituição que não deixou entre nós vestígios de atividades anteriores a 1211”[4]. Distinguiam-se da antiga cúria régia, assembleia que lhes pode ter dado origem, pela sua composição mais complexa onde os concelhos emergiram a par da nobreza e do clero[5], e pela discussão insistente de assuntos políticos, fiscais e económicos. O rei convocava e orientava as Cortes, mas estas apareciam a partir do século XIII, cada vez mais, como um direito dos povos reconhecido pelo monarca.

O período áureo das Cortes corresponde ao período de governo de D. Fernando a D. Afonso V (séculos XIV e XV), pois foi durante este período que elas se reuniram com mais frequência. É justamente no final da Idade Média que se produziram as fontes que servem de base ao nosso estudo, tendo a Guarda apresentado os seus agravos e pedidos (segundo os registos que se conservaram) em 19 assembleias diferentes.[6] Em 1465, excecionalmente, a Guarda foi palco de reunião de Cortes durante a visita do rei D. Afonso V. Esta visita parece ter proporcionado uma extensão das vozes locais que se fizeram ouvir nessa assembleia, conforme podemos verificar no teor dos capítulos especiais apresentados nessa ocasião pelo povo. Neste período as Cortes tiveram uma enorme influência nos assuntos públicos, pois o rei precisava ainda do apoio financeiro e político da sociedade, traduzindo a frequência da sua convocação e a importância das decisões tomadas o vigor desta instituição. [7]

“Nas Cortes, o poder local concelhio enfrenta-se com o poder central, as periferias decisórias ascendem à centralidade da autoridade e prática políticas. Linhas verticais e hierarquizadoras do poder demarcam-se, mas em consentâneo permeabilizam-se. Paralelamente, esse mesmo poder concelhio encontra-se com o poder senhorial. Linhas horizontais de poder, que no geral se excluem e raramente se assimilam, afrontam-se e acusam-se.”[8] As Cortes foram, assim, um espaço de diálogo entre diferentes realidades do ponto de vista geográfico, mas também social, administrativo e político. Segundo Armindo de Sousa,[9] as Cortes eram o areópago do povo, nunca se realizaram sem a sua presença. Era a única instituição na qual os representantes concelhios podiam “trabalhar” com o rei, ao passo que a nobreza e o clero tinham outros meios para chegar à fala com o monarca.

O trabalho desenvolvido nas diversas reuniões de Cortes registava-se em Capítulos Gerais e Específicos para cada concelho. Os Capítulos Gerais espelham os “interesses da maioria dos concelhos […] e a correspondente resposta do monarca”[10] enquanto que os Capítulos Específicos já apresentavam os problemas particulares de cada concelho - questões económicas, jurídicas, fiscais e administrativas. São estes últimos documentos que irão merecer a nossa atenção. A Guarda, no período em estudo, apresentou pelo menos 64 capítulos especiais em Cortes (outros podem ter existido, mas deles não se conservou registo), sendo o concelho da Comarca da Beira que maior participação teve em Cortes, resultado da sua importância  como cidade episcopal e com maiores recursos para levar junto do rei os seus problemas.

Procuradores concelhios nas cortes

A instituição concelhia, que se consolidou nos séculos XII e XIII, pressupunha que os seus habitantes, os vizinhos, fossem dotados de autoridade administrativa e judicial, ainda que limitada.  Os reis apoiavam-se neste poder concelhio para contrabalançar o poder senhorial, para dar resposta aos problemas militares e fiscais da sua governação, ao mesmo tempo que mantinham a sua autoridade através dos funcionários externos que enviavam aos concelhos – corregedores, almoxarifes ou mesmo juízes de fora. O poder concelhio ia-se restringindo, nos séculos XIV e XV, a gerir as almotaçarias e as obras públicas; julgar delitos menores; fazer listas de contribuintes; vigiar a ordem pública; administrar os bens do concelho e, o que sobremaneira nos interessa agora, em submeter petições e agravos às Cortes.

Sempre que o rei convocava Cortes, o concelho enviava os seus representantes, os procuradores, escolhidos pela vereação. Os concelhos participavam na discussão da agenda proposta e aproveitavam a sua proximidade ao rei para apresentar as suas queixas e pedidos.[11]

A ida a Cortes implicava custos elevados a suportar pela comunidade vicinal, o que muitas vezes envolvia o lançamento de imposto extraordinário para o efeito – a “finta”.[12] Para além da despesa, deveria atender-se às características pessoais e intelectuais dos procuradores. Sendo representantes do concelho deveriam ser capazes de argumentar e de se relacionar, muitas vezes, com realidades completamente diferentes da sua. Nem sempre era fácil encontrar representantes à altura na comunidade de “homens bons”, até porque a ida a Cortes se para uns seria prestigiante, para outros, seria talvez um ónus difícil de ultrapassar. Todas estas questões concorriam para o facto de nem todos os concelhos conseguirem reunir as condições para estarem representados em Cortes. Entre eles havia, também, uma hierarquia que se plasmava na ordem cerimonial com que os procuradores se sentavam nas grandes assembleias da abertura das Cortes.

As delegações concelhias levavam das suas terras, já previamente redigidas, as petições a apresentar em Cortes. Os procuradores, enquanto representantes do concelho, não estavam autorizados a agir para além das orientações determinadas pelo governo local. Mas quem eram esses procuradores? Quem foram os escolhidos para representar a comunidade da Guarda em Cortes?

Durante o século XIV, ao que parece, foram escolhidos alguns oficiais concelhios para a representação em Cortes. A partir do século XV, no entanto, essas funções ter-se-iam transferido para os oficiais régios, os quais estariam “mais aptos […] para fazer valer os interesses dos maiores dos concelhos, que não deviam andar longe dos seus, nos meandros das Cortes e da Corte, que de mais perto conheciam.”[13]  Tanto uns como outros eram homens capazes de ler, redigir, e assinar textos de valor oficial, e de comunicar ou argumentar oralmente em assembleias e reuniões restritas. Era mais comum encontrar homens com competências jurídicas ou financeiras entre os funcionários do rei, razão acrescida para que fossem eles os escolhidos.

Já ao longo do século XIII assistimos à instalação de nobres em localidades do termo da Guarda, mau grado os protestos da autoridade municipal. No século XV os capítulos especiais de cortes dão-nos conta das queixas quanto à isenção de impostos e outros privilégios usufruídos, no concelho, pelos escudeiros e criados de nobres[14]. De facto, nesse século assistiu-se um pouco por todo o país a um processo de aristocratização dos governos concelhios, processo que se observou claramente para o caso da Guarda com a nomeação de procuradores às cortes de origem nobre. Pode referir-se, a título de exemplo, a escolha de Diogo Lopes Portocarreiro, nobre, como procurador às Cortes de Torres Vedras (1441) e de Lisboa (1455), assim como a de Lopo Fernandes, escudeiro, enviado às Cortes de Lisboa (1455), de Évora/Viana (1481-82) e de Évora (1490), ou a de Duarte Gonçalves, escudeiro do rei, enviado às cortes de Coimbra/Évora (1472-73). Estariam estes homens melhor preparados para representar o concelho e integrar-se nos cerimoniais das grandes assembleias de Cortes? Teriam talvez maior facilidade para desenvolver as suas influências tirando partido da sua posição e estatuto social nos meandros políticos para os quais eram destacados, sugerem alguns historiadores. Mas estas são apenas inferências, pois nada conhecemos em concreto do modo como encararam as tarefas de que foram incumbidos pelo governo da Guarda.

O que parece inegável é que o concelho da Guarda várias vezes se aproveitou da experiência e saber adquiridos por estes homens nas suas missões às Cortes do reino. Assiste-se, com efeito, a uma repetição da presença dos mesmos procuradores a diferentes reuniões de Cortes.[15]

Burgueses e mesteirais na Guarda

A população residente na cidade da Guarda no séc. XIII era composta por lavradores, comerciantes e artesãos, “tríade necessária à subsistência”[16] de uma população que à época registava um forte crescimento demográfico. Segundo Armindo de Sousa, a população não-privilegiada dos concelhos medievais portugueses pode ser dividida em dois grandes grupos: a aristocracia urbana e as gentes dos mesteres[17]. Ao primeiro grupo associamos os mais ricos do lugar, os mais prestigiados porque detinham o controlo do governo municipal e tinham riqueza que lhes dava estatuto. Era a classe dos “homens bons”, a que poderíamos também chamar “burgueses”.[18] Na Guarda encontramos este grupo dominante nos proprietários agrícolas ligados a dois produtos que marcam, com alguma insistência, os agravos e petições dos procuradores da Guarda às Cortes. São eles os produtores de vinho e os criadores de gado que, por diversas vezes, manifestaram em Cortes o seu descontentamento em relação ao não cumprimento da livre circulação do gado ou dos privilégios de isenção de portagem em todo o reino[19], ou que insistentemente defendiam a exclusão de vinhos de fora para comercialização na cidade[20]. Era a oligarquia da cidade, os que detinham capital económico, social e político, a pugnar pelos seus interesses e pelo que consideravam ser também o interesse da comunidade. A preocupação com o abastecimento da cidade surgia como uma razão válida para estas queixas e agravos, mas a defesa dos interesses do grupo era igualmente uma força mobilizadora da participação em Cortes.

Ocupando uma posição intermédia entre os burgueses e os que viviam do seu trabalho como os serviçais e braçais, incluímos os mesteirais. Eram estes os excluídos do poder, pois os mesteirais, a par dos lavradores vivendo no termo da cidade, eram marginalizados como grupo que não tinha acesso durante este período a posições do governo local.[21]

Até ao final do século XVI a palavra “mester” designava o “ofício mecânico”, ou seja a profissão artesanal, e “mesteiral” designava o artífice. Muitos mesteirais vendiam diretamente o que produziam, e transacionavam às vezes a matéria-prima, tal como o produto acabado. Dentro do conceito medieval português de “mesteiral” podemos incluir também, como propõem historiadores de hoje, alguns agentes que se dedicavam ao pequeno comércio de retalho como almocreves e regatões, os carniceiros, alguns trabalhadores rurais mais especializados e até pescadores. O termo aplicado inicialmente aos artífices/ofícios mecânicos designará progressivamente os que emigravam dos campos para as cidades para nela trabalharem em ofícios, os “novos habitantes da cidade, autonomizados e conscientes da sua importância social.”[22]

Na Guarda a atividade artesanal parece ter sido relativamente pouco variada no final do século XIII, a julgar pelas fontes conhecidas, ainda que os artesãos surjam mencionados no direito costumeiro local. Progressivamente a atividade artesanal foi-se especializando na alimentação e no vestuário. As escassas fontes referem a existência de carniceiros e padeiras, sapateiros, correeiros, tecelões. Nos ofícios da construção encontramos menção a pedreiros, e existiam ferreiros ligados às atividades agrícolas e aos transportes. [23]

No Tombo da Comarca da Beira, datado de 1395[24], conseguem identificar-se várias profissões, seja de forma direta (ex: Abraão Mamon, sapateiro) seja de forma indireta através da referência, por exemplo, à “casa de atafona” ou aos “açougues”. Pode, ainda, referir-se a existência, no pequeno bairro da Guarda que este inquérito descreve, de atividades ligadas à alimentação – moleiro, carniceiro; vestuário e calçado – sapateiro e alfaiate; trabalho do ferro – ferreiro; trabalho de peles – peleiro e esqueireiro; comércio – regateiras, mercadores e almocreve; estalajadeiro; almoxarife. Importa destacar que a referência ao almoxarife, atrás apresentada, comprova a existência na cidade de oficiais ligados à escrita, associados à diocese, ao julgado, e ao almoxarifado. Os ofícios da escrita multiplicam-se no século XIV, penetrando diversos âmbitos da sociedade pelo recurso crescente aos tabeliães, mas também em resultado da crescente importância da cidade no processo de administração e burocratização do poder central, e no crescimento do aparato clerical ligado à diocese. Os oficiais régios eram agentes de centralização do poder, mas também, como vimos, protagonistas da vida política local. A autonomia administrativa concelhia dependia da sujeição e obediência ao rei, esperando os concelhos que o monarca exercesse o seu papel no controlo dos excessos e abusos do poder dos alcaides. [25]

Devemos, ainda, acrescentar que o Tombo da Comarca da Beira descreve apenas uma parte da cidade, e espalhados por outros bairros certamente viveriam outros mesteirais. Na toponímia antiga da Guarda sobreviveram até ao século XIX referências preciosas ao trabalho artesanal da cidade medieval. [26] Referem-se alguns exemplos: Porta do Curro; Porta da Erva; Rua dos Ferreiros; Poço do Gado; Rua dos Açougues.

A produção têxtil estava no século XV em pleno desenvolvimento, quer nos tecidos de linho, quer nos de lã. Os estudos de Joana Sequeira comprovaram a existência na zona da Guarda de artesãos ligados ao “pano meirinho”, tecido produzido com lãs de melhor qualidade, e também concluíram que nesta área se produzia “saial” ou pano de linho.[27]

 Nos capítulos especiais de Cortes da Guarda, no período em estudo, a existência dos artesãos e pequenos comerciantes pode confirmar-se, ainda que por vezes apenas de forma indireta, como se pode verificar pelo quadro-resumo abaixo apresentado.

Todas estas referências, como se vê, são dispersas. E, no entanto, os mesteirais tornaram-se eles mesmo em assunto debatido insistentemente em Cortes, ao longo de todo o século XV.[29]  A sua presença no governo das cidades era, com veremos, largamente hostilizada pelas oligarquias municipais. Também na Guarda este enfrentamento se processou.

Como se explica a escassa informação sobre mesteirais nos capítulos especiais da Guarda? Se considerarmos o trabalho artesanal do têxtil, por exemplo, teremos que reconhecer que era feito maioritariamente em contexto doméstico, sendo a família uma unidade de produção coesa. Os saberes passavam de pais para filhos; a oficina era contígua à habitação; a produção e a venda eram duas faces da mesma realidade que envolvia os membros da família. Certas tarefas, como bem refere Joana Sequeira em relação ao trabalho feminino na área têxtil,[30] misturavam-se com as restantes tarefas domésticas. Nesta circunstância, a identificação específica da atividade artesanal e/ou comercial nem sempre é feita de forma explícita nos textos. Outro fator que deve ser tido em consideração prende-se com o “caráter de poli-atividade de muitos mesteirais”[31] e a sazonalidade do seu trabalho, muitas vezes apenas complementar ou subsidiário do trabalho agrícola. Havia, no entanto, artesãos mais especializados na cidade da Guarda, como vimos mais acima.

Acresce o facto de, no caso português, a estruturação corporativa dos ofícios medievais ser apenas incipiente em muitas cidades. Teriam então os mesteirais portugueses a força de se fazer notar e exigir um papel político ativo, em todas as cidades do reino? Há que distinguir a participação de mesteirais no governo a título individual, que os historiadores têm detectado para o século XV em vilas minhotas como Ponte de Lima e Vila do Conde ou, por exemplo, na cidade de Coimbra, da participação dos mesteirais enquanto representantes das suas corporações ou organismos profissionais.[32] A Casa dos 24 em Lisboa ou a dos 12 em Guimarães eram exemplos excecionais, seja como instituições de regulamentação dos ofícios seja como mecanismo de representatividade dos mesteres nas reuniões da “vereação”, que era afinal o corpo restrito de cidadãos que compunham o governo municipal. Na maior parte das pequenas cidades portuguesas, os praticantes do mesmo mester associavam-se simplesmente nas confrarias religiosas promovendo a desejável solidariedade entre os seus membros.

Eram os mesteirais muitas vezes designados como o “povo” das cidades. Sabemos que em muitos lugares do reino era neste grupo compósito (sobretudo nos mesteirais organizados e nos lavradores residindo extramuros nos lugares do “termo”) que os burgueses projetavam os seus ódios e os seus medos, pois estes detinham posições socioeconómicas semelhantes às suas e almejavam partilhar o poder concelhio no mesmo espaço geográfico e social. A escassez de referências a mesteirais, na Guarda, pode atribuir-se ao facto de eles ou não preocuparem os homens do governo, dado não serem um grupo suficientemente forte e poderoso para pôr em causa o seu poder, ou porque sendo cumpridores dos seus deveres fiscais não foram motivo de queixas nos capítulos especiais. Apesar destas circunstâncias, nas Cortes da Guarda de 1465 os mesteirais tomaram voz com o restante “povo” contra os burgueses, surgindo expressamente como opositores da oligarquia citadina. Não pretendiam talvez ascender ao poder, mas certamente queriam ser ouvidos. Eram eles a voz dos excluídos, dos “miúdos”, dos marginalizados no diálogo habitual das Cortes.

A temática dos capítulos especiais da Guarda

Os Capítulos Especiais de Cortes dão conta de queixas diversas apresentadas pelos procuradores da Guarda. A sua leitura permite compreender as preocupações do quotidiano da população do concelho.[33]

Temas com maior peso nestes textos são os de natureza administrativa e fiscal, seguidos dos de âmbito judicial e económico. Os assuntos de natureza social, militar, religiosa ou jurídica existem também, mas não com a mesma premência. Importa, no entanto, referir que nenhum destes temas se compreende isoladamente. Muitas vezes, um tema interliga-se com outros o que, se por um lado complica a categorização, por outro sugere à nossa análise novas relações que os textos, pela sua natureza circunstancial, não explicitam.

Por detrás desta categorização mais ou menos artificial, quais os assuntos mais insistentemente comunicados pelos procuradores às Cortes? Quais as questões que preocupavam o Concelho da Guarda?

Identifica-se a importância das questões comerciais, na insistência do discurso concelhio sobre os entraves ao movimento e troca de bens. Estas preocupações relativas à livre circulação de mercadorias e gado estão repetidamente presentes nos pedidos de isenção de pagamento de portagem e montado nas petições às Cortes de Coimbra de 1394; 1396, Santarém; 1441, Torres Vedras; 1465, Guarda; 1468, Santarém e 1481-82, Évora-Viana. Esta inquietação prende-se com a necessidade de abastecimento da cidade, que dependia de produtos vindos de fora de modo a garantir a subsistência económica da comunidade que se queixava que a “cidade é tam fria e de má servidão”.[34] Por outro lado, estas apreensões indicam-nos quem verdadeiramente exprimia os interesses do concelho. É nos proprietários agrícolas e criadores de gado que podemos situar a oligarquia dirigente do concelho, a verdadeira aristocracia dos não-privilegiados. Embora governasse em nome da comunidade, era o interesse da burguesia da cidade que zelava pelas actividades económicas ligadas à sua posição social e política na comunidade, uma vez que era a posse de riqueza que lhes proporcionava “liberdade, independência e disponibilidade política, status”.[35]

A preocupação com a manutenção do estatuto social conduzia com frequência esta aristocracia concelhia a pugnar pela exclusividade da sua participação no governo, confrontando-se de forma mais ou menos latente com os oficiais régios e o poder central, assim como com o poder dos senhores, e com as pretensões dos habitantes do termo.

O conflito com os oficiais régios/poder central resultava quer do processo de centralização do poder real, que procurava estender a todo o país a autoridade régia, quer do excesso de zelo de alguns oficiais régios que obrigavam os procuradores do concelho a pugnar pela sua autonomia nas petições e agravos apresentados nas cortes de Évora de 1436; Torres Vedras de 1441; Évora de 1442; Lisboa de 1455; Évora de 1460; Santarém de 1468; Coimbra-Évora de 1472-73 e de Évora-Viana de 1481-82.

O estatuto deste grupo de homens bons do concelho advinha-lhes da sua posição social e autonomia governativa, que procuravam manter em oposição às investidas do poder senhorial, como aconteceu nas Cortes de Évora de 1325 nas quais o concelho da Guarda se queixou dos “escudeiros e donas e clérigos e ordens” que compravam propriedades contra o antigo costume, propriedades que seriam depois isentas e escapariam ao controle concelhio. Nas cortes de Torres Vedras (1441) queixaram-se de “poboradores” que por viverem com fidalgos queriam “[…]ser escusos das ditas fintas e doutros encargos” . O mesmo aconteceu relativamente ao confronto com o poder eclesiástico, por exemplo face à influência crescente da ordem de S. Francisco, quando os da Guarda solicitaram, nas Cortes de Évora de 1442, que no caso dos que alegavam ser membros da ordem os “homens mancebos [..] sirvam nos encargos do concelho salvo fazendo eles residência no dito mosteiro”. Como nos diz Rita Costa Gomes[36] “a cidade de quatrocentos, alargando o seu domínio e influência regional, fá-lo de modo conflituoso e difícil face a outras forças concorrentes – nomeadamente a dos novos senhorios e da crescente intervenção régia”.

Parecia existir uma consciência por parte da elite dirigente da cidade da sua dependência económica e fiscal das aldeias do termo bem como da existência de interesses comuns uma vez que a comunidade concelhia comungava de “uma comum ruralidade [que] a todos irmanava.”[37] Os recursos do termo serviam, antes de mais, para o aprovisionamento da cidade[38] embora, como vimos, se transportasse de lugares mais longínquos outros bens de que a Guarda necessitava. Todo o entrave, segundo a argumentação do concelho, poderia levar à escassez e ao consequente despovoamento. Nas cortes de Santarém de 1396 manifestou-se a preocupação dos procuradores do concelho da Guarda pelo facto de “[…] a maior parte dos moradores do termo da dita cidade que pera ela trazem os mantimentos se vão da dita cidade e termo a morar a outras partes o que dizem que a nós nom é serviço nem prol da terra […]” . Era o interesse comum que estava em causa, daí que se entenda esta reivindicação feita pela aristocracia concelhia da extensão do privilégio do não pagamento de portagem também aos habitantes do termo.

Esta comunhão de interesses não obstava que pudessem surgir reivindicações e protestos a defender os interesses quer do termo, quer dos habitantes da cidade. Nas cortes de Coimbra de 1394 os procuradores solicitaram a decisão régia que os aldeãos pagassem o mesmo aos andadores” que os da cidade pois “[…] as gentes sam tão poucas que os andadores nom podem ser bem pagos porque muitas aldeias lhes nom querem mais pagar do que dois soldos na moeda antiga […]”. Estes oficiais concelhios eram portadores de mensagens e decisões a todo o território concelhio, e mesmo fora dele.[39] Os alcaides e homens-bons do concelho eram “auxiliados nas suas funções pelos escrivães de concelho, vigários e andadores […] que aplicavam as normas estabelecidas e puniam ou cobravam as coimas aplicadas a quem não as respeitasse”.[40] Ainda nas mesmas cortes de Coimbra de 1394 temos os da cidade a protestar contra os habitantes da vila do Touro que ”[…] nom querem aqui vir velar nem roldar nem querem pagar em finta nem em talha o que é contra direito estarem em nosso termo e nom usarem connosco como usam os lugares do termo desta cidade […]”. Na conjuntura difícil das guerras joaninas, o serviço militar das localidades do termo era crucial para manter a fortificação da cidade. Nas cortes de Torres Vedras de 1441, os procuradores do concelho de novo se queixaram da existência de alguns “homens moradores deste termo” que se fizeram passar por procuradores e recebiam “[…] do dito termo um alqueire de pão e seu real”, pedindo “[…] que nom haja em esta cidade senom um procurador[…]”.

Estes textos também esclarecem qual era a outra face da moeda – as queixas dos habitantes do termo em relação aos da urbe. Os habitantes do termo da Guarda queixaram-se de discriminação pelo facto de não usufruírem do privilégio do não pagamento de portagem e/ou montado como acontecia com os da cidade. Com alguma insistência esta reivindicação surge-nos nas Cortes de Coimbra de 1394, nas quais se solicitou a isenção de portagem e montado para o termo, uma vez que o privilégio só tinha sido lavrado nas Cortes de Viseu para os da cidade “per Gonçalo Peres e Martim da Maia”, vedores da fazenda do rei. A situação persistia nas cortes de Santarém de 1396, como vimos atrás, nas quais se solicitou novamente que os moradores do termo “hajam os ditos privilégios pela guisa e condiçam que os  da dita cidade ham” e que fossem aqueles isentos de “portagens” e “costumagens”.

Nas cortes de Lisboa de 1439, momento de grande tensão política que marcou o início da regência do Infante Dom Pedro, foi apresentada uma eloquente petição na qual os moradores do termo se queixaram do pagamento do montado, do qual estavam isentos os moradores da cidade, afirmando que “a cidade é corpo cujos membros som as aldeias por corpo e membros como sejam uma coisa”, reivindicando assim para os do termo o mesmo privilégio dos habitantes da cidade.

Como anteriormente mencionámos, em 1465, aquando da realização das cortes da Guarda, os habitantes do termo, juntamente com os mesteirais e lavradores extramuros, apresentaram as suas próprias petições. Nestes capítulos expostos pelo “povo”, voltamos a verificar o conflito latente entre o termo e a cidade e, dentro desta, entre a oligarquia e os mesteirais. Era um antagonismo não tanto na esfera institucional, mas um conflito pelo direito à palavra, pelo direito a chegar ao rei para exporem as suas queixas. Protestando com modéstia a sua “simpreza e pouco valor”, este grupo, que constituiria afinal a maioria da população do concelho[41], revelou o seu descontentamento contra os “maiores” que formavam o governo concelhio. Manifestaram-se contra as fintas em excesso cobradas pelos oficiais e homens bons, contras as rendas em demasia cujo valor poderia “pagar a metade das despesas”, contra a cobrança indevida de fintas “lançadas aos do povo” para custear as despesas dos procuradores às cortes da Guarda, sendo que os mesmos “nunca saíram de suas casas nem leixaram de prover suas fazendas” . Se todas estas queixas assumiam um carácter eminentemente fiscal, procurando os do termo libertar-se dos excessos de impostos, já a solicitação para nomear “um procurador o qual haja poder d’estar sempre por o povo” revela afrontamento em relação à partilha do poder concelhio. Com esta atitude, os mesteirais e lavradores do termo manifestaram a ambição, ainda que timidamente expressa, de poder participar no governo reivindicando para si a denúncia dos abusos, mas também que o seu representante pudesse “contradizer o que contra o povo fazer quiserem sem razão”.

Os capítulos especiais de temática económica confirmam que as questões ligadas à vida de “aldeãos” e mesteirais raramente ocorrem fora da perspectiva do grupo dirigente do concelho.  A contínua menção à produção de vinho e sua importância na vida económica do concelho, em conjunto com a criação de gado, revela que estas atividades eram uma importante fonte de rendimento económico para os proprietários.

Os capítulos especiais de cortes dão conta da importância do montado como, a título de exemplo, se comprova pelo quadro que se segue.

Os parcos rendimentos dos terrenos pobres faziam com que o cultivo da vinha, por exemplo “junto ao Mondego e à ribeira de Gaia”[42], fossem uma alternativa necessária para um grupo de proprietários do termo que se queixaram da proibição de entrada na cidade dos vinhos por eles produzidos. Esta proibição era uma forma de proteccionismo para aqueles que residiam na cidade, que venderiam o seu vinho sem concorrência dos lavradores do termo. Mesmo para estes, a medida havia de entender-se de modo restritivo. Nas Cortes de Lisboa o concelho queixava-se do bispo e restantes membros do clero que não respeitavam a proibição de entrada de vinho de fora. Assim, os procuradores solicitaram que nenhuma pessoa “nom meta vinho de fora do termo da dita cidade salvo o que houver de suas vinhas próprias”. Nas Cortes da Guarda de 1465 o problema voltou a colocar-se, com os do termo a solicitar a permissão para a entrada de vinhos para bodas e batizados, e despesas de suas casas. Como se vê, o conflito latente entre a oligarquia dirigente da cidade e os habitantes do termo tinha também uma vertente económica, com interesses divergentes a propósito de um produto que parece ter tido peso importante na economia da região.

Após esta breve análise dos assuntos tratados em capítulos especiais de cortes, importa agora compreender o tipo de argumentos que os procuradores do concelho da Guarda esgrimiam para validar as suas petições. A que apelaram os procuradores? Quais as amarras onde foram buscar a justificação para os seus pedidos?

Como ficou demonstrado na análise da temática das queixas apresentadas, as preocupações expressas na argumentação usada nestes textos eram de natureza diversa. Acima de tudo, quer-se o bem comum, evitar o prejuízo da comunidade. A propósito da manutenção do privilégio de isenção de portagem, os procuradores do concelho da Guarda às Cortes de Santarém de 1396 referiram que “a maior parte dos moradores do termo da dita cidade que para ela trazem os mantimentos se vão da dita cidade e termo a morar a outras partes o que dizem que a nós nom é serviço nem prol da terra”[43]. A proteção da comercialização do vinho e da produção do gado, bens essenciais da região, visaria evitar também, alegavam eles, a perda do rédito dos impostos. Justificações humanitárias podem surgir, como sucede com o argumento de proteção do preso perante o abuso do oficial régio que “manda coutar 20 ou 30 carros para levar os presos neles e muitos se assenta que vão assim atrouxados”[44]. Mas há também a queixa contra o judeu que faz “grande saída e serventia de dia e de noite pelo adro de uma igreja de Sam Vicente […] e fazem ci[e]ntemente em este adro muitas sujidades”[45], o que poria em causa, argumentaram os procuradores, o bem-estar do cristão, aludindo à conhecida complexidade na coabitação, nem sempre fácil, entre as duas comunidades religiosas.

Fazem-se nestes textos considerações sobre “esta [terra que] é tam fragosa”[46], onde “há mui poucos poboradores”[47]e pedem-se medidas que ajudem a inverter a situação, pois “esta cidade será de todo por tempo despovoada a qual coisa senhor é pouco vosso serviço”[48]. O principal argumento neste caso reside na suposta importância da Guarda para o rei e para o reino, e na necessidade de não desvalorizar este concelho fronteiriço face a outros.

É notória no discurso da Guarda em cortes a noção de uma autonomia que se tem e se deseja, o sentimento de pertença a um todo identitário que é preciso manter e reforçar. Este argumento justifica a apresentação de queixas contra o poder dos senhores mas também contra o abuso dos oficiais régios. O mesmo sentimento pode levar a clarificar a situação de Riba Côa, aceitando-se a identidade territorial desta região mas ao mesmo tempo reclamando os da Guarda que não se justificaria o pagamento de portagem ali, já que “os quais lugares sam dentro em vossos reinos”.[49]

A quem se recorre para fazer valer os argumentos apresentados pelos procuradores da Guarda? Ao rei, sempre que as Cortes dão oportunidade ao concelho para se exprimir. Mas qual a argumentação utilizada para alcançar os objetivos? Na maioria das vezes os representantes do Concelho recorriam ao costume, à tradição, à antiga lei, ao privilégio dado por reis anteriores para justificar a petição.[50] Armindo de Sousa, em relação às cortes de Coimbra de 1385, destaca a importância das argumentações de natureza política, moral e jurídica apresentada pelos procuradores de cortes.[51] Por aquilo que acima se enuncia, as argumentações nos capítulos especiais de Cortes em análise não serão muito distintas. 

Perante as petições e tendo em conta as argumentações, o rei responde.

A concordância do rei em relação às petições feitas está espelhada no número significativo de deferimentos (29), a que pode acrescer o número de deferimentos parciais (15) e de deferimento condicional (2). Ou seja, num total de 64 respostas dadas, o rei concorda, de forma absoluta ou parcial/condicionada, em 71,8% dos casos.[52] Importa, no entanto, referir que a aceitação das reivindicações concelhias pode não ter uma concretização efetiva. Se isso não acontecesse não haveria necessidade de repetir os mesmos pedidos em várias cortes, como acontece, por exemplo, com a referência a portagens e à livre circulação de gado.

Apesar de tudo, esta concordância do rei pode ter dado aos concelhos a certeza da utilidade de ida a Cortes e alimentado a convicção do monarca que seria possível ter no Concelho um aliado no processo de centralização do poder. Esta dupla circunstância acentua a ambiguidade das Cortes e do seu papel – areópago do povo, mas dependente da convocatória do rei e sujeito à sua anuência. Até em reuniões de Cortes tão importantes como aquelas que elegeram um novo rei em 1385, segundo o historiador Armindo de Sousa, “aceitou-se pedir às Cortes a autoridade que elas não possuíam: usa-se uma linguagem decisória – acordamos, nomeamos, consideramos – justificada tacitamente numa soberania afinal fictícia.”[53]

Tal como os procuradores argumentavam para fazer valer as suas petições, também o rei justificou muitas vezes as suas decisões. Como seria compreensível, as respostas mais extensas e com maior consistência argumentativa são as que não dão deferimento à proposta. 

Usualmente o rei justifica a sua decisão de acordo com a lei, o foro, a tradição, o costume, seja em questões fiscais, de administração, de jurisdição. Isto tanto para aceitar a proposta feita como para a negar.

Mas o rei, sendo a figura de proa de um país e querendo cada vez mais chamar a si a direção do reino, tinha que gerir conflitos, apoiar as petições do concelho mas não criar ruturas com os poderes estabelecidos e contra aqueles de que tantas vezes o concelho se queixou. “No xadrez do jogo de poderes, os monarcas tinham dificuldade em decidir de imediato, muito em particular se estivessem em causa enfrentamentos face à nobreza e à clerezia.”[54] Por essa razão muitas vezes as suas respostas são dúbias, apelam ao adiamento, à conciliação das partes, ao não afrontamento.

Considerações finais

O Concelho da Guarda, que entre 1325 e 1490 enviou numerosos capítulos especiais às  Cortes convocadas pelos monarcas, perdeu em parte a sua prevalência militar devido à integração das terras de Ribacoa no território nacional com o tratado de Alcañizes, em 1297; em contrapartida afirmou-se cada vez mais, nos finais da Idade Média, como entidade administrativa e religiosa importante para o rei e para a Igreja.

A Guarda integrava um espaço urbano e uma zona rural - o termo, constituindo-se, no entanto, como um só corpo[55]. Um corpo que sabe que só sobrevive se estiver unido, o que não invalida nem resolve as tensões, os jogos de forças entre as suas partes.

De que vive e de que precisa este corpo? Vive da vinha, da pecuária e da existência de um mercado de comércio do sal, ferro e produtos agrícolas, na Praça de S. Vicente e na feira anual de S. João.

Quem dominava na Guarda? Quais os interesses que foram levados a Cortes pelos procuradores do Concelho? Quem foram os procuradores da Guarda?

A oligarquia citadina era composta por quem produzia o vinho e criava o gado. São os seus interesses que são levados a cortes - questões comerciais, de abastecimento da cidade, de facilitação da circulação do gado ou de defesa do vinho. Já eram essas as atividades económicas que mais frequentemente o antigo direito costumeiro do século XIII regulamentava e referia.

Esta elite considerava-se, no entanto, porta-voz dos interesses do concelho, da sua identidade territorial e política e por isso se arvorava o direito de interpelar o rei, de pôr em causa os abusos dos seus funcionários, de fazer valer a sua autonomia face a senhores laicos e eclesiásticos, de facilitar o comércio para que a cidade fosse abastecida e prosperasse.

Os interesses dos grupos mais baixos da população – serviçais e braçais – não são perceptíveis nos capítulos especiais de cortes da Guarda. O mesmo não se poderá afirmar em relação a um outro grupo que se começava a destacar na cidade – o dos oficiais da escrita. É no seio deste grupo, afinal, que foram recrutados muitos dos procuradores que a Guarda enviou às cortes.

E os interesses dos mesteirais? Eles constituíam um grupo muito diverso e multifacetado mas que, no conjunto, poderá ser identificado como o estrato médio da sociedade da época. A referência à sua existência e interesses é por vezes difusa nestes textos. Mas ela existe! A sua voz fez-se ouvir, sobretudo nas Cortes da Guarda, em 1465, e encontra-se registada nos capítulos relativos aos “lavradores e povo da cidade da Guarda e seu termo”. Aí, fazendo coro com as queixas dos habitantes do termo, insurgem-se contra o pagamento excessivo de fintas e “custas” cobradas por oficiais e homens bons e chegam a pedir ao rei um procurador do “povo”. Apesar do pedido não ter sido atendido, é sintomática a sua existência. 

Em Cortes, os Procuradores da Guarda queixaram-se da pobreza do solo, da falta de gente, do agravamento de impostos, do abuso de certos senhores e até de oficiais régios, das dificuldades de manter um ativo comércio.

Faziam apelo à tradição, aos seus foros e costumes para, muitas vezes, legitimar os seus pedidos. E o rei utilizava o mesmo argumento para lhes dar, maioritariamente, aval.

Assim se foi consolidando a ligação entre o poder local e o central, nem sempre de forma linear ou transparente. O concelho apelava ao rei, obtinha dele benesses, mas os oficiais régios eram também motivo de contencioso e a sua presença amiúde abusiva, argumentavam os da Guarda. Por outro lado, os representantes concelhios a Cortes iam sendo progressivamente substituídos, a partir do séc. XV, por oficiais régios. Quem eram eles? A oligarquia concelhia que o rei enobrece e controla, ou uma nobreza da confiança do rei que retirava progressivamente autonomia ao concelho?

Questões que a continuação da nossa pesquisa poderá ajudar a esclarecer.

Normas seguidas na atualização do texto

Os textos dos capítulos de Cortes, já repetidamente publicados em transcrição paleográfica, foram levemente atualizados na ortografia em todas as citações inseridas neste trabalho.

 Bibliografia

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  • Sequeira, Joana, O Pano da Terra, Porto, Universidade do Porto, 2014. 
  • Serrão, Joel (ed.), Dicionário de História de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas,1985.
  • Sousa, Armindo de, “O discurso político dos concelhos nas cortes de 1385”, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, História, série II, 2 (1985), pp. 9-44.
[1] A explicação sucinta deste processo é proposta por Rita Costa Gomes, A Guarda Medieval, 1200-1500, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1987, pp. 27-29.

[2] A Guarda Medieval,  p. 105.

[3] Segundo leitura feitas por Rita Costa Gomes, A Guarda Medieval, pp 161-199 e Maria Helena Cruz Coelho, Luis Miguel Rêpas, Um Cruzamento de Fronteiras. O discurso dos concelhos da Guarda em Cortes, Iberografias 9, Porto, Campo das Letras, 2006.

[4] Joel Serrão (ed.), Dicionário de História de Portugal, Porto, Livraria Figueirinhas,1985, s.v. “Cortes .

[5] Tinha representantes do clero, nobreza e, a partir de 1254 ( Cortes de Leiria), do  povo.

[6] Um Cruzamento de Fronteiras, p. 20.

[7] Dicionário de História de Portugal…, s.v. “Cortes.

[8] Um Cruzamento de Fronteiras, p. 12.

[9] Armindo de Sousa, História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, vol.II, p. 512.

[10] Um Cruzamento de Fronteiras, p.10.

[11] Um Cruzamento de Fronteiras, pp. 9 e 10.

[12] Nas cortes da Guarda de 1465 queixava-se o povo que “pera estas cortes são lançados aos do povo tres tres reais que monta em soma três mil reais…”  Um Cruzamento de Fronteiras, p. 131 [texto atualizado na ortografia, ver Nota Final deste trabalho].

[13] Um Cruzamento de Fronteiras, p. 18.

[14] Ver Capítulos especiais da Guarda às Cortes de Torres Vedras de 1441, in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 113.

[15] Para além dos casos atrás assinalados ( Diogo Lopes Portocarreiro, Lopo Fernandes, Duarte Gonçalves) há a referir, como exemplo, João Afonso do Bispo e Diogo de Pinhel, nas Cortes da Guarda (1465) e de Santarém (1468); Luís Peres que esteve nas Cortes de Lisboa (1439) e de Torres Vedras (1441).

[16] Rita Costa Gomes, A Guarda Medieval, p. 106.

[17] Armindo de Sousa, História de Portugal,  p. 408.

[18] Segundo Armindo de Sousa, História de Portugal…, pp.407-409.

[19] Ver capítulos especiais das Cortes de Coimbra (1394); Santarém (1396); Lisboa (1439); Torres Vedras (1441); Évora (1442); Guarda (1465); Évora-Viana (1481-82), in Um Cruzamento de Fronteiras, pp. 101, 104, 110, 115, 117, 127 e 144.

[20] Ver capítulos especiais das Cortes de Lisboa (1455); Guarda (1465); Évora-Viana (1481-82); Évora (1490) in Um Cruzamento de Fronteiras, pp.120, 130, 144, e 147.

[21] Armindo de Sousa, História de Portugal, pp.412-414.

[22] Dicionário de História de Portugal…, s.v. “Mesteirais”.

[23] Rita Costa Gomes, A Guarda Medieval, p. 108.

[24] As referências ao Tombo da Comarca da Beira, aqui apresentadas, resultam da sua versão atualizada em 2017, no âmbito da 1ª Oficina de História da Guarda, e integrada no artigo “A judiaria da Guarda em 1395”, Iberografias 14, Guarda, Centro de Estudos Ibéricos, 2018, pp.84-96, (http://www.cei.pt/ohg/a-judiaria-da-guarda-em-1395.html, consultado em 2019/07/17).

[25] Segundo Armindo de Sousa, História de Portugal…, p. 286.

[26] Mª José Santos Neto, A Toponímia da Cidade da Guarda e a Construção da Memória Pública no século XX, Guarda, Agência para a Promoção da Guarda, 2013.

[27] Joana Sequeira, O Pano da Terra, Porto, Universidade do Porto, 2014, pp. 268-273.

[28] As transcrições de textos de capítulos de cortes seguem a edição da obra de Maria Helena Cruz Coelho e Luis Miguel Rêpas, Um Cruzamento de Fronteiras. O discurso dos concelhos da Guarda em Cortes, Iberografias 9, Porto, Campo das Letras, 2006. Todas as citações textuais no presente texto foram levemente atualizadas na ortografia [Ver Nota Final].

[29] Armindo de Sousa, História de Portugal, p. 413.

[30] Joana Sequeira, O Pano da Terra…, pp.132-144.

[31] O Pano da terra…, p.128.

[32] Maria Helena Cruz Coelho, Joaquim Romero Magalhães, O Poder Concelhio: das origens às Cortes Constituintes. Notas da História Social, Coimbra, Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986, pp. 24 e 27.

[33] Na metodologia de análise da temática dos capítulos opta-se pela utilização de categorias classificativas propostas por Mara Helena Cruz Coelho e Luis Miguel Rêpas in Um Cruzamento de Fronteiras ... e anteriormente por Armindo Sousa, “O discurso político dos concelhos nas cortes de 1385”, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, História, série II, vol. 2, 1985, pp. 9-44.

[34] Capítulos especiais de Cortes de Évora (1460) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 124.

[35] Armindo de Sousa, História de Portugal, p. 409.

[36] Rita Costa Gomes, A Guarda Medieval, p. 113.

[37] Um Cruzamento de Fronteiras, p. 29.

[38] A Guarda Medieval, p.106.

[40]Forais e Foros da Guarda..., p. 6.

[41] A Guarda Medieval, p. 100: “É que por cada citadino (fosse ou não “vizinho” do concelho) se podiam contar sete aldeãos...”

[42] A Guarda Medieval, pp. 131,132, 107.

[43] Capítulos especiais de Cortes de Santarém (1396) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 104.

[44] Capítulos especiais de Cortes de Évora/Viana (1481-82) in Um Cruzamento de Fronteiras…, p. 141.

[45] Capítulos especiais de Cortes da Guarda (1465) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 126.

[46] Capítulos especiais de Cortes de Torres Vedras (1441) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 112.

[47] Capítulos especiais de Cortes de Torres Vedras (1441) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 113.

[48] Capítulos especiais de Cortes de Torres Vedras (1441) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 113.

[49] Capítulos especiais de Cortes da Guarda (1465) in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 127.

[50] A título de exemplo, refira-se que nas Cortes de Coimbra de 1394, capítulo 4, a fundamentação apresentada pelos procuradores apela aos “foros e privilégios e costumes de que sempre usaram até ora e foi uso e costume desta cidade”.

[51] Armindo de Sousa, História de Portugal, p. 25.

[52] De acordo com a categorização utilizada por Maria Helena Cruz Coelho e Luis Miguel Rêpas:  “Por sua vez, as respostas distribuem-se por seis espécies: deferimentos, delegações, evasivas, non innovandum, adiamentos e indeferimentos. Considerámos ainda deferimentos parciais e deferimentos condicionais, pelo que deferimentos absolutos surgem designados apenas por deferimentos.” in Um Cruzamento de Fronteiras, p. 64

[53] Armindo Sousa, “O discurso político dos concelhos nas cortes de 1385”, in Revista da Faculdade de Letras…, p. 41.

[54] Maria Helena Cruz Coelho, Luis Miguel Rêpas, Um Cruzamento de Fronteiras, p. 28.

[55] Cortes de Lisboa de 1439,“a cidade é corpo cujos membros sam as aldeias por corpo e membros como sejam uma coisa”
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